Revista Casa Marx

Marx anticolonial e antirracista: a unidade entre luta negra e luta de classes

Flávia Telles

Este texto foi desenvolvido para a formação sobre Questão Negra do Movimento Revolucionário de Trabalhadores e adaptado para o formato de artigo com o objetivo de pensar a atualidade dos debates sobre marxismo e questão negra frente ao cenário internacional convulsivo de crises, guerras e processo de luta, mas também para o cenário nacional onde a classe trabalhadora passou a levantar a bandeira de luta contra a escala 6x1. Na semana do 20 de Novembro onde lembramos a luta do Quilombo de Palmares é fundamental retomar os fundamentos teóricos do marxismo para pensar a luta negra no Brasil.

Introdução

Para compreender a importância dos debates acerca da questão negra e marxismo é preciso retomar algumas definições centrais do cenário internacional. Estamos diante de um panorama internacional que tem um caráter bastante convulsivo, marcado pelo aprofundamento da crise de 2008, de uma certa agonização da ordem neoliberal, onde não tem mais espaço para as ilusões de globalização harmônica, com uma forte decadência da hegemonia dos EUA, que se expressa fortemente no resultado eleitoral com a vitória de Trump, e que cenários mais clássicos começam a se desenhar, onde voltam a se configurar cenários de guerra no centro da Europa, como expressa a guerra na Ucrânia, ou mesmo expressões como o genocídio palestino.

Mas que também vai encontrando respostas como a onda de protestos e acampamentos pró-Palestina, um cenário internacional que o historiador Christopher Clark comparou com o momento prévio da primavera dos povos na Europa, que foi um momento de intensa luta de classes. Uma comparação que é muito importante, que precisamos ver as diferenças com a atualidade, é chamativa do cenário convulsivo que como viemos afirmando reatualiza a etapa imperialista de Crises, Guerras e Revoluções, como apontam o Emílio e Matias em “A situação mundial e o espectro da primavera revolucionária de 1848”.

O Brasil também se insere nessa dinâmica internacional, onde a frente ampla que se configurou com as eleições de Lula-Alckmin vai buscando dar respostas para proteger os lucros da burguesia frente a continuidade da crise capitalista, com ataques como o arcabouço fiscal, e seu pacto predatório com o agronegócio, STF e militares, atravessado por um regime com autoritarismos e bonapartismos do judiciário e militares, por isso definimos que há hoje um Lulismo senil em um regime degradado. Um projeto político que abre espaço para a direita, que se expressou com as eleições municipais de 2024, em que o direita dita como “centrão” vai administrar 63% 1 dos municípios brasileiros. No município de São Paulo, a chapa Boulos- Marta, com um PSOL indo cada vez mais à direita, que no segundo turno buscou dialogar com a base de Marçal, e mesmo assim perdeu para Nunes.
Recentemente, vimos um questionamento da escala 6×1 nas redes sociais e alguns atos nas capitais do país, mostrando que na classe trabalhadora há um questionamento de massas à a escala 6×1 que é resultado de vários ataques como a reforma trabalhista e terceirização irrestrita, legado do golpe institucional e da extrema-direita que o governo Lula-Alckmin segue mantendo. Mais do que nunca é necessário resgatar os fundamentos do marxismo e da questão negra, especialmente num momento como este o fim da escala 6×1, com redução para 30 horas semanais de trabalho é uma demanda que está totalmente vinculado com a questão negra no Brasil, porque somos nós negros e negras que ocupamos os postos de trabalho mais precários e somos alvos da violência do Estado.

Marx e a questão negra

Na tradição do marxismo o racismo é tratado como um fenômeno tipicamente capitalista. Nos baseamos para isso em Marx e Engels, mas também em autores como CLR James e George Breitman, além de diversos antropólogos e historiadores que, a partir de dados históricos e estudos culturais mostram a relação intrínseca entre capitalismo, racismo e escravidão.

Os estudos de George Breitman de 1954, por exemplo, mostram que na Grécia Antiga já existia escravidão, mas não se justificava pela cor da pele, e sim por dívidas e guerras. Ou seja, ninguém era discriminado e escravizado pela cor da sua pele, mas em outras bases. É com a escravidão moderna que o racismo surge como ideologia e passou a ser a fundamentação teórica de uma escala totalmente nova de escravidão, que atingiu quase a totalidade do continente africano, e posteriormente, as Américas, onde a raça também é fundamento para a escravização indígena, que inclusive eram chamados pelos colonos portugueses no Brasil de negros da terra.

A escravidão está inserida naquilo que Marx chamou de acumulação primitiva de Capital, isto significa que o racismo, o tráfico de escravizados e o trabalho escravizado de africanos foi a base de recursos para o capitalismo se desenvolver enquanto um sistema econômico. A análise marxista deste momento afirma que a Inglaterra só se desenvolveu com o trabalho e o tráfico de escravizados transatlântico que começou a enriquecer o primeiro país que fez sua revolução industrial, mostrando a combinação entre escravidão e escravidão assalariada do processo da Revolução Industrial. A ideologia racista contou com a ajuda da igreja católica para se desenvolver e depois de todas as teorias eugenistas do século XIX que foram se desenvolvendo mesmo com o fim da escravidão. A teórica norte americana Keeanga-Yamahtta Taylor no artigo “Raça, classe e marxismo” (2018) diz que Marx entendia as dinâmicas do racismo num sentido moderno também – como um meio da burguesia fazer que os trabalhadores que tinham interesses comuns e objetivos uns com os outros, tornar-se inimigos mortais por causa de ideias racistas e nacionalistas subjetivas, ainda que reais.
Vendo as tensões entre trabalhadores irlandeses e ingleses, com uma alusão à situação americana entre trabalhadores negros e brancos, Marx (1869) 2 escreveu:

“Todos os centros industriais e comerciais da Inglaterra possuem uma classe trabalhadora dividida em dois campos hostis: proletários ingleses e proletários irlandeses. O trabalhador comum inglês odeia o trabalhador irlandês por acreditar ser um concorrente que rebaixa seu
padrão de vida. Em relação ao trabalhador irlandês, ele se sente um membro da nação dominante e por isso se transforma numa ferramenta dos aristocratas e capitalistas de seu país contra a Irlanda, assim, fortalecendo a dominação daqueles sobre si mesmo. Ele aprecia preconceitos religiosos, sociais e nacionais contra o trabalhador irlandês. Sua atitude é muito similar à dos ‘pobres brancos’ com os ‘negros’ nos antigos estados escravistas dos EUA. O irlandês paga com juros na sua própria moeda. Ele vê o trabalhador inglês a uma só vez como cúmplice e ferramenta estúpida da dominação inglesa da Irlanda. Esse antagonismo é mantido vivo artificialmente e intensificado pela imprensa, pelo púlpito, pelas revistas de humor, em suma, por todos os meios à disposição das classes dominantes. Esse antagonismo é o segredo da impotência da classe trabalhadora inglesa, apesar de sua organização. É o segredo através do qual o capitalista mantém seu poder. E essa classe tem plena consciência disso” (Marx,1869)

Dessa citação, pode-se ver uma teoria marxista de como o racismo funciona na sociedade contemporânea, depois que a escravidão terminou. Marx estava destacando três coisas: primeiro, que o capitalismo promove competição econômica entre trabalhadores; segundo, que a classe dominante usa a ideologia racista para dividir os trabalhadores uns contra os outros; e, finalmente, que, quando um grupo de trabalhadores sofre opressão, ele impacta negativamente toda a classe.

Essa é a base sobre a qual é possível entender que existe uma confluência entre luta negra e luta de classes no Brasil. Na época escravista, a luta de classes se dava entre senhores de escravos e escravizados, desde Zumbi dos Palmares, passando pela revolta dos Malês, a greve negra na Bahia e as inúmeras revoltas e levantes que deram fim à escravidão. Portanto, desde sua origem, a luta contra o racismo está associada à luta de classes, separá-las é não perceber que o capitalismo em seu desenvolvimento se fez pela escravidão, que até hoje a burguesia ainda desfruta desta herança. Por consequência, depois da escravidão o racismo se constitui enquanto uma teoria para fazer com quem os capitalistas paguem salários menores aos negros e negras e assim rebaixar as condições de vida de toda a classe trabalhadora.

O racismo se expressa até na composição salarial, aquilo que é socialmente necessário para que o trabalhador possa manter sua força de trabalho, pois ao existir um componente moral que justifica o rebaixamento dos salários, o capitalista vai até onde o trabalhador aguenta ir, no limite das suas condições de vida, pois assim garante mais margens de lucro. Ainda promove uma separação entre negros e brancos, que está à serviço de separar a classe trabalhadora, quando relega aos negros o lugar da terceirização, da informalidade, do trabalho uberizado e etc.

Portanto, não existe separação entre luta negra e luta de classes, isso não implica que os negros sejam uma classe social, pois os negros são um grupo social dentro da classe trabalhadora. Aqui é preciso também entender as diferenças entre opressão e exploração, onde a opressão significa a subordinação de grupos sociais distintos para melhor explorar, como negros, mulheres, e a exploração diz respeito ao fato de que estamos diante de uma sociedade em que existem duas classes fundamentais, a burguesia e a classe trabalhadora, em que uma vive da apropriação do produto do trabalho da outra, em que a burguesia só se constitui em enquanto classe à medida que explora e suga o trabalho da classe operária (que é branca, negra, indígena, masculina, feminina, lgbtqiap+, atravessada por grupos sociais distintos). E uma das engrenagens do sistema capitalista é submeter as opressões para melhor explorar.

Marx anticolonial e antirracista

Esclarecido estes pontos, abordaremos sobre aqueles que chamam Marx de eurocêntrico, que o criticam dizendo que Marx interpretava o mundo apenas centrado na Europa e nos valores europeus, desprezando os países não europeus. Existem teóricos, como Edward Said, que é um teórico palestino de bastante importância e vem sendo reivindicado contra todo genocídio da Palestina, mas que escreve em Orientalismo (1978) um livro que traz essa ideia de Marx como eurocêntrico, algo que tempos depois acabaria sendo reivindicado por teóricos pós coloniais.

Existem também teóricos que vão mais à direita, como Carlos Moore que é expressão cabal da ofensiva feita ao marxismo dentro dos espaços acadêmicos. No seu livro O marxismo e a questão racial: Karl Marx e Friedrich Engels frente ao racismo e à escravidão (2010) em que detrata as posições de Marx e Engels sobre a questão negra, Moore vai afirmar que Marx não só era eurocêntrico como era racista, e que ele não tratou sobre sociedades para além da Europa.

“Na teoria geral de Marx e Engels o raciocínio de ambos eram simples: a carnificina e a pilhagem fora da Europa, seriam a base para o desenvolvimento vertiginoso, no Ocidente, do Capitalismo industrial e da classe trabalhadora assalariada. Por sua vez isso levava à revolução e enfim ao socialismo, eles poucos se importavam com as consequências do Imperialismo Ocidental para suas vítimas não ocidentais…”(Moore, 2010, p.87)

E ainda diz que o único interesse de Marx pela Guerra Civil nos EUA era pelas vantagens que a “classe trabalhadora ariana” da Inglaterra iria tirar de um conflito que opunha supostamente massas negras e opressores brancos. É importante compreender que Marx não só tratou, mas foi entusiasta de diversas lutas que tinham um caráter anticolonial, no início da década de 1850, Marx escrevia para o New-York Tribune — um jornal com o qual colaborou durante mais de uma década — e expressava com total clareza as características do capitalismo naquele momento. Dizia que a burguesia nunca tinha “realizado um progresso sem arrastar indivíduos e pessoas em sangue e sujeira, através da miséria e da degradação” (1848). Mais tarde, Marx empreendeu extensas investigações sobre sociedades não europeias e o seu anticolonialismo ferrenho tornou-se ainda mais evidente.

Kevin Anderson, em seu Marx nas Margens (2019), ajuda a compreender que Marx se debruçou sobre a Rússia, a China, os EUA, e que tem escritos sobre a América Latina, que foi um grande estudioso das sociedades não ocidentais, ao ponto de afirmar que se surgisse uma revolução na China poderia tomar toda a Europa. Além disso, Marx foi um dos maiores entusiastas da guerra civil americana, de 1861, que mostrou uma forte combatividade dos escravos pela sua liberdade. Sobre essa luta realizou várias trocas de cartas com Engels, que expressavam uma diferença entre os dois, porque Engels via com menos possibilidades a vitória do norte sobre o sul escravista, devido à diferença de capacidade militar entre eles. Porém, Marx já naquele momento mostrava que não era possível analisar a situação somente em termos militares, já que estava em jogo a possibilidade de uma revolta escrava.

Além disso, ele será um dos combatentes para que a classe trabalhadora inglesa tomasse uma posição clara sobre a escravidão nos EUA, que gerou enormes frutos, porque ali se expressou uma potente aliança entre os trabalhadores da Inglaterra e os escravizados dos EUA. Mesmo com as misérias que os trabalhadores ingleses passavam devido a interrupção de fornecimento de algodão pelos estados do Sul para a Inglaterra, as instituições dos trabalhadores, sindicatos e associações se colocavam contra a escravidão. O que gerou um movimento que teve uma forte confluência com o desenvolvimento da Associação Internacional dos Trabalhadores, a AIT, que na sua mensagem inaugural de 1869 escrita por Marx diz:

“Não foi a sabedoria das classes dominantes, mas a heroica resistência das classes trabalhadoras da Inglaterra à sua insensatez que salvou a Europa Ocidental de mergulhar em uma infame cruzada pela perpetuação da escravidão do outro lado do Atlântico” (Marx, 2022, p.360-361).

Quando se desenvolve a guerra civil norte-americana, Marx defendeu que “o que há de mais grandioso acontecendo no mundo neste momento, é o movimento dos escravos”(Marx, 2022, p.241), não só nos EUA, mas também na Rússia. Marx também analisou a sociedade russa naquele momento, e dizia que era iminente um processo revolucionário ali. Em sua correspondência com a exilada russa Vera Zasulitch, Marx começou a sugerir que as aldeias comunais agrárias da Rússia pudessem ser um ponto de partida para uma transformação socialista, “capaz de evitar o processo brutal da acumulação primitiva de capital pelo qual passou o Ocidente”.

Ou seja, nada menos eurocêntrico do que isso. Então, a ideia de que Marx só tratou sobre os principais e mais desenvolvidos países europeus é extremamente equivocada. Marx não só falou, mas a luta negra e anticolonial é parte do desenvolvimento do pensamento marxista. Kevin Anderson (2019) afirma que a filósofa Dunaiévskaia foi uma das que notou por exemplo importantes ligações entre os escritos sobre a Guerra Civil nos EUA e o Livro I de O Capital. A filósofa argumentava que a guerra e suas consequências inspiraram Marx a acrescentar o capítulo “A jornada de trabalho” n’O Capital, já que a conquista pela liberdade nos EUA levou à luta pela conquista da jornada de trabalho de 8 horas na Europa. Marx sabia que existia uma forte relação internacional também entre a classe trabalhadora.

É essa visão profunda da conexão entre os mais oprimidos do mundo e a luta de classes que é parte do legado do marxismo, e do legado que carregou, por exemplo, o documento da III Internacional em 1922 que expressa um programa para a questão negra que partia da defesa das lutas negras, uma posição fortemente anti-imperialista do proletariado mundial e da igualdade salarial e de direitos entre negros e brancos. Além de todos os debates mais tarde do Trotsky com a seção sul-africana da quarta internacional e com os trotskistas norte-americanos pensando sempre a relação entre luta negra, auto-organização e direito à autodeterminação, com o desenvolvimento da luta de classes internacional.

Quando chamam Marx de eurocêntrico, o que se busca apagar é justamente um legado que conseguiu se conectar com a luta dos negros e negras a partir de ter centro na luta de classes. Como afirmamos no começo, estamos falando de um cenário internacional convulsivo, com configurações pré-guerra, armamento bélico das grandes potências, fortalecimento da extrema direita internacional, frentes amplas e alternativas de conciliação de classes, e isso também significa uma maior ofensiva contra o povo negro para minar as possibilidades de unidade das fileiras operárias. Assim, retomar esse legado do marxismo hoje precisa significar atualizar sobre esse novo cenário também a inseparável relação entre luta negra e luta de classes, que significa batalhar para que dentro dos espaços de organização da classe trabalhadora, as demandas e programa das massas negras, ou seja, as medidas para combater o racismo, sejam tomadas como demandas de toda a classe, no sentido da fundamental unidade da classe trabalhadora.

 

NOTAS

 

1. Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/partidos-do-centrao-vao-comandar-62-das-prefeituras-do-pais/ acessado dia 22 de novembro de 2024

2. Disponível em https://www.marxists.org/portugues/marx/1869/11/questao.htm acessado 22 de novembro de 2024.

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