Danilo Paris
Trump mal havia terminado de alcançar os 270 delegados que lhe garantiriam o retorno à Casa Branca, quando os primeiros sinais de impacto no Brasil começaram a surgir. Os sismógrafos registraram em tempo recorde as ondas causadas pelo abalo no coração do império. Não é à toa. A eleição de Trump tem impactos incalculáveis, e nem o mais hábil dos analistas pode prever todas as suas consequências. O que já se pode afirmar é que estamos diante de uma grave crise das democracias liberais, capaz de transformar a doutrina de Fukuyama em peça de museu. Por aqui, os primeiros impactos se mostram em diversos níveis. Comecemos pelo econômico. Assim que os resultados foram divulgados, diversos articulistas da grande imprensa publicaram seus textos pedindo cortes de gastos mais robustos, por “prudência”, é claro. Relembrando os movimentos meticulosamente treinados das competições de nado sincronizado, o Copom já antecipava o aumento de 0,5% nos juros. Afinal, diante de qualquer incerteza, é melhor garantir alguns bilhões a mais aos credores da dívida pública. São sinais econômicos conjunturais, mas que indicam algo: a pressão de ajustes mais duros. Lula já tinha um plano de cortes em sua mesa antes dos resultados vindos do norte. Mesmo o dólar, que abriu em disparada, recuou fortemente após o Planalto confirmar que tais cortes viriam. No BC, a subida dos juros também não começou agora, e nesse momento conta com o aval de Galípolo, indicado por Lula para chefiar o banco em 2025. Mas tudo isso ainda é apenas a espuma do mar para a economia nacional. Suas profundezas ainda estão por se revelar. A agressividade da guerra comercial e os impactos do chamado “isolacionismo econômico” de Trump podem gerar efeitos de diversas naturezas, como maiores dificuldades nas cadeias internacionais de suprimentos e, consequentemente, maior pressão inflacionária, só para citar alguns exemplos. Na intersecção entre o debate econômico e político, a derrota dos democratas surge como uma severa advertência a Lula e ao PT em relação aos seus planos para 2026. Enquanto o governo comemora o crescimento surpreendente do PIB, muitos têm lembrado a célebre frase de Maria da Conceição Tavares: “PIB não se come.” Ou seja, os índices econômicos que o governo divulga como grandes notícias não têm, necessariamente, impacto na percepção das pessoas sobre a situação econômica. Nos EUA, surgiu até um neologismo para descrever esse fenômeno: “vibecession.” A palavra junta os termos “vibe” e “recessão” para descrever o clima percebido pelas pessoas na economia real, no dia a dia. De nada adiantou Biden comemorar o controle da inflação se os preços continuavam muito altos. Tampouco foi eficaz celebrar índices de crescimento enquanto a concentração de renda seguia aumentando. Para vastos contingentes nos EUA, a percepção era de que a economia não ia bem e poderia piorar. De acordo com dados da plataforma World Income Database, dirigida pelo economista francês Thomas Piketty, desde o primeiro mandato de Trump a desigualdade social nos EUA tem crescido de forma contínua. Enquanto o 1% mais rico se apropriou de mais de 20% da renda, e os 10% mais ricos de quase 50%, a metade inferior da pirâmide social ficou com apenas 13,4% da renda nacional. Assim como nos EUA, no Brasil grande parte da população não percebe melhorias na economia. Em setembro, a Quaest mostrou que aumentou o percentual de pessoas que acreditam que a economia vai piorar no próximo ano. Agora, 41% pensam nessa direção, enquanto 33% acreditam que haverá uma melhora. Por isso, no interior do próprio governo, é provável que disputas maiores se intensifiquem. Embora ninguém queira contrariar os interesses do capital financeiro, a dosimetria dos cortes e ajustes passará sempre por essa discussão. Trata-se de uma situação delicada, em que a austeridade pode significar a perda de chances de reeleição, enquanto a falta de austeridade pode significar a perda do apoio de importantes setores das classes dominantes. Já do ponto de vista da oposição de direita, a presença de Eduardo Bolsonaro na comemoração republicana revelou o óbvio. A extrema-direita brasileira, e o clã Bolsonaro em particular, está em polvorosa com o triunfo de seu amo, e não sem motivo. A eleição de Trump renova as forças morais de uma extrema-direita que vinha enfrentando importantes reveses nacionalmente, ainda que tenha obtido alguns triunfos nas eleições municipais.Bolsonaro nem esperou o “defunto esfriar” para enviar seu recado de subserviência em entrevista à Folha. Declarou que reconhece seu papel e que sua importância para Trump é comparável à que o Paraguai tem para o Brasil. Dessa analogia, deduz-se que ele se considera pequeno, ainda que com certa relevância. Na mesma entrevista, Bolsonaro emitiu sinais inéditos, que vão além da mera subserviência. Quando questionado sobre erros de seu mandato, afirmou que deveria ter escolhido um político como ministro da Casa Civil. Como se não bastasse, sugeriu Temer como um possível vice, o que foi prontamente desmentido pelo próprio Temer, que classificou a informação como “esquisitíssima.” Aqui, é importante decifrar o conteúdo oculto, embora bastante explícito. Aquele que ocupou a Casa Civil em seu mandato, sem ser propriamente um político, foi ninguém menos que o general Braga Netto. Vale lembrar que, pouco antes de assumir o ministério, o general ocupava o posto de comandante do Estado-Maior. Além disso, após acostumar seu séquito com a prática de indicar sempre um general como vice — primeiro Mourão e depois Braga Netto — chama a atenção que Bolsonaro agora queira anunciar o desejo por um colega com as características de Temer: um conhecedor nato dos mais obscuros corredores do regime político, é reconhecido por suas habilidades em negociatas e acordos, seja com quem for. Mais do que a verdade dos fatos, o que importava para Bolsonaro eram essas credenciais. E, como “cereja do bolo,” Bolsonaro admitiu que foi muito impetuoso em sua relação com a imprensa, que ele próprio escolheu como uma de suas grandes inimigas. Para deixar claro, Bolsonaro utilizou não só meias palavras, mas passou um conjunto de recados. No fundo, ele quis se apresentar como uma figura reformada: sem generais, sem arroubos, disposto a negociar…
Trump mal havia terminado de alcançar os 270 delegados que lhe garantiriam o retorno à Casa Branca, quando os primeiros sinais de impacto no Brasil começaram a surgir. Os sismógrafos registraram em tempo recorde as ondas causadas pelo abalo no coração do império.
Não é à toa. A eleição de Trump tem impactos incalculáveis, e nem o mais hábil dos analistas pode prever todas as suas consequências. O que já se pode afirmar é que estamos diante de uma grave crise das democracias liberais, capaz de transformar a doutrina de Fukuyama em peça de museu.
Por aqui, os primeiros impactos se mostram em diversos níveis. Comecemos pelo econômico. Assim que os resultados foram divulgados, diversos articulistas da grande imprensa publicaram seus textos pedindo cortes de gastos mais robustos, por “prudência”, é claro.
Relembrando os movimentos meticulosamente treinados das competições de nado sincronizado, o Copom já antecipava o aumento de 0,5% nos juros. Afinal, diante de qualquer incerteza, é melhor garantir alguns bilhões a mais aos credores da dívida pública.
São sinais econômicos conjunturais, mas que indicam algo: a pressão de ajustes mais duros. Lula já tinha um plano de cortes em sua mesa antes dos resultados vindos do norte. Mesmo o dólar, que abriu em disparada, recuou fortemente após o Planalto confirmar que tais cortes viriam.
No BC, a subida dos juros também não começou agora, e nesse momento conta com o aval de Galípolo, indicado por Lula para chefiar o banco em 2025.
Mas tudo isso ainda é apenas a espuma do mar para a economia nacional. Suas profundezas ainda estão por se revelar. A agressividade da guerra comercial e os impactos do chamado “isolacionismo econômico” de Trump podem gerar efeitos de diversas naturezas, como maiores dificuldades nas cadeias internacionais de suprimentos e, consequentemente, maior pressão inflacionária, só para citar alguns exemplos.
Na intersecção entre o debate econômico e político, a derrota dos democratas surge como uma severa advertência a Lula e ao PT em relação aos seus planos para 2026. Enquanto o governo comemora o crescimento surpreendente do PIB, muitos têm lembrado a célebre frase de Maria da Conceição Tavares: “PIB não se come.”
Ou seja, os índices econômicos que o governo divulga como grandes notícias não têm, necessariamente, impacto na percepção das pessoas sobre a situação econômica.
Nos EUA, surgiu até um neologismo para descrever esse fenômeno: “vibecession.” A palavra junta os termos “vibe” e “recessão” para descrever o clima percebido pelas pessoas na economia real, no dia a dia. De nada adiantou Biden comemorar o controle da inflação se os preços continuavam muito altos. Tampouco foi eficaz celebrar índices de crescimento enquanto a concentração de renda seguia aumentando. Para vastos contingentes nos EUA, a percepção era de que a economia não ia bem e poderia piorar.
De acordo com dados da plataforma World Income Database, dirigida pelo economista francês Thomas Piketty, desde o primeiro mandato de Trump a desigualdade social nos EUA tem crescido de forma contínua. Enquanto o 1% mais rico se apropriou de mais de 20% da renda, e os 10% mais ricos de quase 50%, a metade inferior da pirâmide social ficou com apenas 13,4% da renda nacional.
Assim como nos EUA, no Brasil grande parte da população não percebe melhorias na economia. Em setembro, a Quaest mostrou que aumentou o percentual de pessoas que acreditam que a economia vai piorar no próximo ano. Agora, 41% pensam nessa direção, enquanto 33% acreditam que haverá uma melhora.
Por isso, no interior do próprio governo, é provável que disputas maiores se intensifiquem. Embora ninguém queira contrariar os interesses do capital financeiro, a dosimetria dos cortes e ajustes passará sempre por essa discussão. Trata-se de uma situação delicada, em que a austeridade pode significar a perda de chances de reeleição, enquanto a falta de austeridade pode significar a perda do apoio de importantes setores das classes dominantes.
Já do ponto de vista da oposição de direita, a presença de Eduardo Bolsonaro na comemoração republicana revelou o óbvio. A extrema-direita brasileira, e o clã Bolsonaro em particular, está em polvorosa com o triunfo de seu amo, e não sem motivo. A eleição de Trump renova as forças morais de uma extrema-direita que vinha enfrentando importantes reveses nacionalmente, ainda que tenha obtido alguns triunfos nas eleições municipais.
Bolsonaro nem esperou o “defunto esfriar” para enviar seu recado de subserviência em entrevista à Folha. Declarou que reconhece seu papel e que sua importância para Trump é comparável à que o Paraguai tem para o Brasil. Dessa analogia, deduz-se que ele se considera pequeno, ainda que com certa relevância.
Na mesma entrevista, Bolsonaro emitiu sinais inéditos, que vão além da mera subserviência. Quando questionado sobre erros de seu mandato, afirmou que deveria ter escolhido um político como ministro da Casa Civil. Como se não bastasse, sugeriu Temer como um possível vice, o que foi prontamente desmentido pelo próprio Temer, que classificou a informação como “esquisitíssima.”
Aqui, é importante decifrar o conteúdo oculto, embora bastante explícito. Aquele que ocupou a Casa Civil em seu mandato, sem ser propriamente um político, foi ninguém menos que o general Braga Netto. Vale lembrar que, pouco antes de assumir o ministério, o general ocupava o posto de comandante do Estado-Maior.
Além disso, após acostumar seu séquito com a prática de indicar sempre um general como vice — primeiro Mourão e depois Braga Netto — chama a atenção que Bolsonaro agora queira anunciar o desejo por um colega com as características de Temer: um conhecedor nato dos mais obscuros corredores do regime político, é reconhecido por suas habilidades em negociatas e acordos, seja com quem for. Mais do que a verdade dos fatos, o que importava para Bolsonaro eram essas credenciais.
E, como “cereja do bolo,” Bolsonaro admitiu que foi muito impetuoso em sua relação com a imprensa, que ele próprio escolheu como uma de suas grandes inimigas.
Para deixar claro, Bolsonaro utilizou não só meias palavras, mas passou um conjunto de recados. No fundo, ele quis se apresentar como uma figura reformada: sem generais, sem arroubos, disposto a negociar com as alas do regime e mais contido com alguns adversários. Em outras palavras, um Bolsonaro mais institucionalizado.
O distanciamento dos militares é chamativo e uma novidade. Isso pode ser mais uma das consequências dos efeitos do 8 de janeiro. As Forças Armadas se viram demasiadamente comprometidas com essas ações, o que gerou um problema de Estado. Afastar-se de Bolsonaro pode constituir parte dos acordos com o poder judiciário para livrar o generalato de consequências maiores, além da busca por reconstruir um nível de legitimidade maior socialmente.
Prevendo uma maré mais favorável aos seus planos, Bolsonaro quer enviar um recado aos seus adversários: caso seja reabilitado, não será o mesmo agitador de antes. No entanto, transformar palavras em ações é outra questão, e ninguém pode assegurar que ele agiria assim em um novo mandato. Mutatis mutandis, o que ele parece pretender é remover obstáculos para facilitar o restabelecimento de pontes dentro do regime político.
Que Trump priorize o apoio à reabilitação eleitoral de Bolsonaro é algo que vai depender de fatores complexos. Os problemas geopolíticos que Trump enfrentará são muitos e, portanto, suas prioridades não estarão necessariamente voltadas a Bolsonaro. O conflito com a China e a questão territorial em Taiwan, a situação no Oriente Médio com a guerra na Palestina e no Líbano, a guerra na Ucrânia e os atritos com a Coreia do Norte. São inúmeros os problemas internacionais que, evidentemente, tomarão a atenção de Trump e poderão atrapalhar o apoio que Bolsonaro deseja receber dele agora.
Isso, de forma alguma, significa que Bolsonaro está fora do jogo. Até 2026, muita água vai passar pela ponte da agitada política brasileira. Por um lado,com um possível desgaste do governo Lula e com Tarcísio se mantendo como uma figura forte, Bolsonaro pode acabar relegado a um segundo plano. Por outro, caso não se mostre mais viável outra figura bem alinhada aos ideais trumpistas no cenário de 2026, Trump pode utilizar diversos meios à sua disposição para pressionar por uma reabilitação de Bolsonaro. Elon Musk, por exemplo, poderia ser um aliado nessa missão, como já demonstrou disposição para fazer. E o STF atuou a serviço da política do imperialismo em seus diferentes governos, da Lava-jato treinada pelo Departamento de Estado dos EUA sob Obama, ao golpe institucional em 2016, à prisão e proscrição de Lula em 2018 quando Trump era presidente, à sua reabilitação eleitoral, poucos meses após a eleição de Biden, permitindo que viesse a encabeçar a frente ampla com figuras como Alckmin e Tebet.
Ter um governo totalmente alinhado aos seus propósitos no maior país do Cone Sul, afinal, pode ser muito importante. Em meio a esse mar de possibilidades, tampouco podemos descartar novas figuras, como Marçal, que também mostrou potencial para atrair parte da base bolsonarista, e, por que não, Donald Trump, a quem também declarou sua lealdade.
Por último, mas não menos importante, o debate sobre como combater a extrema-direita ressurge no país – e no mundo – com toda força. Esse tema já havia sido retomado após os resultados das eleições municipais, quando a extrema-direita e a direita obtiveram uma vitória expressiva. A conciliação de classes da Frente Ampla provou, mais uma vez, quem são os verdadeiros favorecidos pela sua composição de forças.
Não há dúvida de que, ao considerarmos a correlação de forças produzida por esse conjunto de fatores, observamos um claro giro à direita na conjuntura do Brasil. O quão profundo esse movimento se tornará ainda dependerá de muitos fatores, especialmente da luta de classes. Isso significa, desde já, a necessidade de construir uma força social capaz de enfrentar a extrema-direita, sem qualquer ilusão em variantes “mal menoristas” que apenas têm servido para fortalecer um mal cada vez maior para as condições de vida das maiorias sociais e populares.