Felipe Guarnieri
Em seu novo artigo Por que a esquerda está perdendo a “guerra cultural”?, publicado na revista Jacobin América Latina, Valério Arcary, dirigente da corrente Resistência (PSOL), expõe com um breve histórico a variante brasileira do que o editorial da revista define como fim de um ciclo da esquerda internacional. Neste artigo, vamos debater com as ideias ali presentes.
Neste âmbito, debatemos no artigo de Matías Maiello, Duas estratégias na esquerda. Um debate com a revista Jacobin, publicado em edição passada do Semanário Ideias de Esquerda, que se trata de um fenômeno de uma esquerda específica:
“Aquela que ficou presa ao ecossistema dos regimes burgueses em crise após abandonar o programa anticapitalista e se alinhar às variantes neoreformistas ou populistas de esquerda. Limitando-se à pura resistência sob o pressuposto de `barrar a direita´, acabou contribuindo para o contrário.” (Maiello, 2024)
No caso brasileiro, essa premissa se prova nos dados dos partidos vencedores nas próprias eleições municipais. Não à toa, os olhares e esforços de Valério Arcary estão voltados para justificar a derrota eleitoral desta esquerda nas eleições municipais de 2024. Principalmente em São Paulo, que polarizou o debate político nacional e onde o PSOL encabeçou com Guilherme Boulos a Frente Ampla petista contra os distintos tons de bolsonarismo das candidaturas de Nunes e Marçal. Por que no país dirigido pela Frente Ampla de Lula-Alckmin, quem se fortalece nas eleições é a direita e a extrema direita?
Segundo o colunista da Jacobin o primeiro fator se deve ao fato que o “nosso campo” (sic) (Governo Lula) não faz disputa política-ideológica. Ao mirar no governo Lula, Arcary termina acertando justamente no que Boulos deixou de fazer. Afinal, como fazer essa disputa com a golpista Marta, defensora das reformas neoliberais, como vice? Ou com um ex-comandante da Rota (grupo de elite da polícia paulistana responsável pelas principais chacinas nas periferias) na coordenação da campanha? Ou calando-se em relação ao direito ao aborto? A verdade é que, diante da derrota do último domingo, Arcary insiste em debater com os que responsabilizam o suposto e mal chamado “identitarismo” da campanha de Boulos por sua derrota também para contribuir com o espantalho de uma candidatura que teria se alçado como porta-voz dos setores oprimidos. Na prática, Boulos seguiu a fórmula petista de rifar essas pautas em prol da “viabilidade burguesa”. O símbolo disso é que, no segundo turno, o que lhe restou foi aceitar ser sabatinado pela extrema-direita mais abjeta, absorver suas pautas do empreendedorismo e de educação financeira nas escolas (que na prática é a manutenção do regime de trabalho precário vigente), ignorar qualquer anseio dos setores oprimidos, colocar-se contra a legalização das drogas e surfar na onda de “mudança” achando que o M de Marçal pudesse se transformar em algum B, que não fosse o de Bolsonaro.
Como por vezes ocorre, Arcary busca falar de um lugar que há muito lhe é desconhecido (esquerda radical). Ainda assim, segundo o dirigente da Resistência, a esquerda radical deve atuar dentro do Governo Lula, como se mostra na própria prática do PSOL. Mundos fantásticos à parte, é preciso assinalar a realidade das coisas: o PSOL é símbolo enfraquecido da esquerda institucional, que sobrevive como apêndice do governo de Frente Ampla Lula-Alckmin, com cada vez menos militância e mais integrado aos dispositivos estatais, como o financiamento do fundo partidário, e mesmo de agentes privados, como o caso da campanha de Boulos (80 milhões de reais, a mais cara do país), apoiando candidatos de oligarquias como dos Barbalho no Pará, ou recebendo apoio de governadores da direita, como de Eduardo Leite para a prefeitura de Pelotas, no Rio Grande do Sul (em que o MES participou como vice na chapa do PT).
Por isso, mesmo quando teoriza, Arcary termina sempre em defesa da esquerda institucional e, consequentemente, da ala esquerda do regime de dominação burguesa. Transpondo para o Brasil, trata-se do regime neoliberal da constituinte de 1988, degradado pelo golpe de 2016 e pelas eleições manipuladas pelo reacionário poder judiciário, que foi determinante para a vitória de Bolsonaro em 2018. Todos esses processos aprofundaram o que chamamos, segundo Gramsci, de crise orgânica, em outras palavras, uma crise de hegemonia das frações dominantes da burguesia em exercer sua dominação de classe. No sentido de que para Gramsci hegemonia é um consentimento encouraçado de coerção, ou seja, implica necessariamente um nexo dialético com o conceito de dominação política.
Mas, na realidade, ao definir hegemonia de forma absoluta como “guerra cultural”, Arcary desvincula a dominação política das relações de produção, das relações de classe, reduzindo-as a uma generalização de valores da esquerda à fórmula de que “é possível mudar o mundo e acabar com a injustiça social.” (Arcary, 2024)
Tal ideia, que poderia e é utilizada tanto pela esquerda institucional, como por qualquer ONG, se chocaria com as forças sociais atrasadas da história e consiste no terreno “hegemônico” (guerra cultural para ser mais rigoroso com os termos utilizados pelo autor), o qual a esquerda estaria em desvantagem e perdendo da extrema-direita. Contudo, a sociedade capitalista está dividida em classes e o Estado burguês não é um aparato neutro, como querem há séculos pintar os ideólogos burgueses. Desse ponto de vista, reduzir o embate hegemônico do Brasil de hoje à “guerra cultural” está de mãos dadas com a noção de que um governo capitalista, isto é, com mil e um laços com empresários, com um programa burguês, subordinado ao imperialismo, pode ser um terreno de disputa da hegemonia pela esquerda. A isso servem essas ideais generalizantes e um tanto quanto vagas de “justiça social”, que acabam por restringir a atuação da esquerda com um programa mínimo nas trincheiras da dominação burguesa (e veremos como muitas vezes mesmo esse programa mínimo é atacado). Se esta esquerda está perdendo, isso não se deve pelo fato de assumir (e não estamos falando da campanha de Boulos) para si as reivindicações dos setores oprimidos, tarefa fundamental para conquistar a hegemonia operária – inclusive porque muitas vezes não o faz. O problema vai muito além do que deixar de fazer disputa ideológica, mas sim diretamente de atuar com a ideologia burguesa dominante. Isto é, a renúncia ao embate entre forças materiais de classe faz com que essa esquerda tome para si a ideologia (e a política, o programa, a estratégia) da classe dominante e assim renuncie a travar qualquer guerra, mesmo a cultural.
Isso está expresso em que o caminho para Arcay, não seria outro que não fosse defender um governo de conciliação de classe como principal arma de combate a extrema-direita:
“Mas o principal instrumento na luta contra a extrema-direita é o governo Lula. Existem outros instrumentos muito importantes, porque a esquerda lidera os principais movimentos sociais: sindical, estudantil, feminista, negro, ambientalista, indígena, e LGBT. Mas o mais poderoso é o governo Lula. Desistir de usar o governo para conquistar a hegemonia confirma que não aprendemos a lição mais importante que o golpe do impeachment nos deixou. A pior derrota é derrota sem luta.” (Arcary, 2024)
Aqui, mais uma vez, Arcary deixa claro sua visão de que o governo Lula, administrando o Estado capitalista, seria uma continuidade da luta dos trabalhadores, das mulheres, negros, LGBTs, etc. Mais do que isso, seria o ator principal em detrimento desses sujeitos. Assim, Arcary, que já havia ressuscitado a “tese” kautskysta da passagem pacífica e democrática ao socialismo, dá o passo adiante e circunscreve o governo de Frente Ampla Lula-Alckmin como arena exclusiva da política. Um governo que aplica o Arcabouço Fiscal neoliberal, que corta bilhões da saúde e da educação para pagar especuladores financeiros, que manteve de pé as reformas trabalhista e da previdência de Temer a Bolsonaro, que injeta bilhões de reais no agronegócio que devasta o meio ambiente, que busca extrair petróleo da Bacia do Amazonas junto à multinacionais estrangeiras, que preserva todos os acordos com o Estado sionista de Israel. Esse governo seria o “principal instrumento da batalha pela hegemonia”. Da hegemonia burguesa sobre o descontentamento popular diante da crise, acrescentamos.
Mas, de fato, não se aprende muito com as derrotas quando se insiste em apostar nos mesmos jogadores. O nível de incorporação dessa estratégia por parte da Resistência é tão profundo, que essa corrente vem buscando reelaborar a história do país sob essa lente. Todos os exemplos históricos de coragem e iniciativa para conquistar força social deixam de lado a classe operária e passam a ser direções reformistas ou nacionalistas da burguesia. Para Arcary foi o anticomunista Brizola, portanto, em 1961, o responsável por lutar contra o golpe militar; e não as greves operárias, a luta por reforma agrária radical dos camponeses e a rebelião dos marinheiros, traídas pela direção stalinista do PCB e o seu apoio ao janguismo, que o mesmo Brizola era o seu principal defensor. Ou o democrata cristão Montoro em 1984, que seria posteriormente um dos fundadores do PSDB, o paladino da democracia contra a ditadura militar, resultado do desvio da direção lulista do ascenso operário de 1978-1980. O menosprezo ao perigo internacional do que representa a extrema-direita, e o bolsonarismo nacionalmente, é da esquerda que insiste em associar as mobilizações de massa com as direções conciliatórias, que em todos os momentos da luta de classes não pensaram duas vezes em trair a luta dos explorados e oprimidos, pavimentando assim, o fortalecimento dos regimes de dominação mais reacionários da burguesia.
Evidentemente, os sustentadores de uma das variantes do domínio burguês não deveriam ser considerados instrumentos de luta da “hegemonia” (sem natureza de classe), pois garantem a preservação do regime burguês, sem rupturas e reduzindo a luta contra a extrema direita apenas a uma “guerra cultural”, sendo ineficaz também nesse terreno. Com essa operação, própria da estratégia reformista, um dos pólos da burguesia passa a representar a esperança e o anseio dos interesses populares. Além disso, Arcary reduz a discussão hegemônica a frear a extrema direita (e não os interesses capitalistas). E fracassa na própria tentativa, ao fechar os olhos, como alguém que protege um dogma sagrado, ao fato de que Lula e o PT fortaleceram os piores inimigos da classe trabalhadora, a direita e a extrema direita – fortaleceram a sua “hegemonia”, ao manter intocados e, mais do que isso, defender os interesses de distintos setores da reacionária classe dominante.
Dentro dessa lógica, só resta à situação defensiva dessa esquerda encontrar explicações por catástrofes naturais. Para Arcary, rebeliões como em junho de 2013 são acéfalas, e não as direções incapazes de as transformar em revoluções ou que diretamente atuam para aborta-las. O PT não disputou a direção de junho, pelo contrário, intelectuais como Marilena Chaui teorizaram as manifestações como o ovo da serpente do fascismo. Haddad na prefeitura auxiliou a repressão de Alckmin. Enquanto Dilma, no governo, aplicava as diretrizes de um pacto social neoliberal para retirar direitos dos trabalhadores, com colaboração da burocracia sindical da CUT e CTB em atuar sistematicamente para que as greves no movimento operário não confluíssem com o levante social da juventude nas ruas. A atuação do PT em junho não foi resultado somente de uma pressão burguesa, mas sim uma continuidade de uma política dos 13 anos de governo Lula e Dilma em administrar a mobilidade social em função de um regime neoliberal, baseado no trabalho precário e no aumento da taxa de lucro da burguesia, com privatizações, terceirizações, desindustrialização e favorecimento dos interesses do agronegócio. Ao passo que rifava os direitos democráticos dos setores mais oprimidos da população em função de alianças pragmáticas com a bancada evangélica no congresso nacional.
O PT vendeu os valores da esquerda e por isso se distanciou da classe trabalhadora, principalmente das novas gerações. Foi neste terreno que operou a Lava Jato e o golpe institucional de 2016. O ovo da serpente não foi chocado pela luta de classes, mas sim pela conciliação. Ao não atacar o problema em suas raízes, a situação defensiva vai se perpetuar reacionária e sempre descolada dos contra-ataques ofensivos. Ou a conjuntura das greves gerais de 2017 era uma ladeira abaixo para classe operária? Novamente a burocracia sindical não se demonstrou como um mecanismo de contenção na luta contra as reformas trabalhistas e da previdência? Somente a ascensão da extrema-direita explica o papel dessas derrotas, sem nenhuma relação entre ambas? Querer que o PT passe a defender qualquer outra coisa que não seja a hegemonia burguesa, só tem sentido quando o objetivo, tal como de Arcary, é ser um agente da esquerda institucional para liquidar a esquerda radical no interior do petismo.
Assim, chegamos ao fato de que o governo Lula 3 não está num impasse, assim como Dilma também não esteve em 2013 e muito menos vale perguntar se Haddad será o novo Joaquim Levy, enquanto o arcabouço fiscal já representa o plano econômico do escritório que a Faria Lima possui em Brasília. Compartilhado pelos governos estaduais, como o próprio Tarcísio em São Paulo. A tese de Arcary sobre esse suposto impasse diz mais dos descaminhos de sua própria corrente diante do lulismo senil, sem ciclo de commodities no qual se apoiar para suas concessões, do que de qualquer análise minimamente séria de um governo que já anuncia novos planos de cortes, sem titubear. Na realidade, a Resistência de Arcary parece viver seu próprio impasse, já que nem o mais vago programa de “justiça social” sua corrente está conseguindo encontrar na realidade pautada pelo “empreendedorismo” ultraneoliberal. Se a extrema-direita possui condições atuais de querer construir um projeto de Estado semelhante aos padrões dominantes da herança do regime escravocrata da década de 1930, apoiando-se na memória histórica ainda viva da ditadura militar, isso ocorre pela decisão do PT em administrar o regime neoliberal nos últimos anos de governo, com ministérios formados por todos os espectros da direita e apoiando-se em medidas bonapartistas do poder judiciário.
E é nesse cenário que o PSOL compõe uma Federação com a REDE, partido burguês de Marina Silva (ministra do governo) e está completamente integrado ao governo Lula-Alckmin. Sobrevive implorando pela estabilidade de um regime burguês em transe. Mas cabe novamente a pergunta: o que a Resistência faz ainda fora do PT? Atua como filial subsidiária. Entretanto, após a humilhação de Boulos, dizem que não há condição de sobrevivência para a esquerda por fora da “arena permissível” do governo Lula-Alckmin. São coadjuvantes fantasiosos da política tradicional petista segundo a qual não existe vida além desse cemitério dos movimentos sociais e da luta de massas que é o PT. Valério Arcary e a Resistência enxergam a sombra de um socialismo democrático como resultado da espera passiva (e, sinceramente, cética) por uma outra época, que só poderia chegar com o êxito da administração estatal do PT em convencer a classe dominante de que é melhor do que a extrema direita na execução de seus interesses, com tons de “justiça social”. Naturalmente, a questão já ultrapassou em muito o dilema da independência de classe. Para essa corrente, presa do PT e amargando um PSOL em decadência, a conciliação de classes e a submissão ao neoliberalismo capitalista com pálidos discursos progressistas são os instrumentos para a hegemonia. O resultado não poderia ser outro, a não ser a degeneração completa, chamando voto na direita ou até no “menos reacionário” entre bolsonaristas:
“Nos municípios em que há duelos entre um candidato da centrão não-bolsonarista e outro da extrema direita, consideramos que a tática correta é o chamado ao voto no candidato da direita para evitar a vitória do bolsonarista, sem depositar nenhuma ilusão ou conferir apoio político a essa alternativa de direita. É o caso, por exemplo, de Belo Horizonte, onde Fuad (PSD) enfrenta Engler (PL); e Belém, onde Igor Normando (MDB) rivaliza com Eder Mauro (PL).
Mas há cidades nas quais a disputa se dá entre dois candidatos bolsonaristas. Nesses casos, o chamado ao voto nulo é a melhor opção. Mas pode haver situação em que há uma candidatura abertamente fascista contra outra menos reacionária, ainda que possa essa última ter apoio de alguma ala do bolsonarismo. Nestes casos, nos parece válido o chamado a ‘nenhum voto’ no candidato diretamente fascista.” (Esquerda Online, 27/10).
Na prática, a Resistência já abandonou as trincheiras da hegemonia operária há anos e atua por um tipo de concertação social dentro dos parâmetros pré-estabelecidos pelo sistema capitalista. No nosso caso, batalhamos para que a esquerda radical seja capaz de fazer emergir outro caminho, superando essa esquerda institucional que atua para neutralizar qualquer força independente da conciliação petista. Na Argentina e na França, os exemplos na luta de classes de uma esquerda que permanece fiel aos seus princípios e classe cada vez mais demonstram a possibilidade da consolidação de uma força social e política capaz de enfrentar governos de direita e extrema direita. Se a esquerda radical na Argentina não optasse por esse caminho, mantendo seu atual peso e influência política, desgraçadamente estaria a reboque da desmoralização do kichneirismo. Enquanto, na França, o Revolution Permanente não seria uma das correntes mais dinâmicas da esquerda diante da dissolução do NPA na frente popular do melanchonismo e da Frente Popular com amigos de Macron. A Jacobin América Latina parece não estar disposta a fazer essa reflexão, e por isso o ciclo que encerra dessa esquerda só aponte para um novo do mesmo tipo, fadado de nascença ao fracasso. E o Brasil é uma prova disso.
FONTES
Arcary, Valério. ¿La izquierda está perdiendo la «batalla cultural»?. 2024
Arcary, Valério. Revoluções ainda são possíveis? 2024
Maiello, Matías. Duas estratégias na esquerda. Um debate com a revista Jacobin. 2024
Online, Esquerda. A batalha do 2° turno contra a extrema-direita. 2024