Diana Assunção
Um debate com o professor de filosofia da USP, Vladimir Safatle, sobre os caminhos da esquerda após os resultados das eleições municipais de 2024.
Antes mesmo dos resultados eleitorais, o filósofo Vladimir Safatle concedeu entrevista ao Jornal O Globo com a seguinte indagação: “A esquerda poderia ter usado as eleições para ressuscitar”. Tal conclusão parte de sua colocação anterior, lançada no começo deste ano onde definiu que “a esquerda morreu”. Safatle tem apontado por um lado críticas corretas e agudas tanto ao governo do PT quanto ao PSOL, partido do qual é filiado e foi candidato, mas que não terminam de ser uma ruptura com uma atuação política de pressão ao governo nem com essa política institucional. Em tempo, poderíamos indagar se sua definição sobre a possível ressurreição da esquerda nas eleições não é mais condescendente do que a chamada “morte da esquerda”. Afinal, faria sentido buscar no processo eleitoral alguma possível recuperação de uma esquerda que “morreu” justamente pela institucionalização?
Como debatemos naquele momento, é preciso começar o debate indicando de que esquerda se está falando. Nesta entrevista, Safatle deixa mais clara sua crítica tanto ao governo Lula quanto ao PSOL, a quem critica corretamente: a entrada no governo foi um “erro brutal”. Entretanto, a crítica de Safatle se dá desde um ângulo onde ainda deposita esperança de que possa surgir uma esquerda institucional, que utilize este terreno, e mesmo governos capitalistas, “a favor de uma política radical”. Ainda que fale da importância da periferia e dos movimentos sociais, aparece como fator secundário na sua reflexão sobre a estratégia da esquerda a perspectiva de apostar na luta de classes extra-institucional, sendo a classe trabalhadora um sujeito que pouco aparece em sua aposta política.
Safatle chega a criticar o que ele define como uma “hiperinstitucionalização” da esquerda no Brasil, mas suas críticas e especialmente soluções ainda passam pelo chamado a que o PT e o PSOL utilizem os mecanismos do Estado Burguês “a favor de uma luta radical”. Sua crítica à localização do PSOL em relação ao governo aponta no sentido de se assumir como uma “oposição de esquerda” para pressionar desde fora como “aliado incômodo” do governo. Isso se verifica em partes nesta expectativa da possibilidade de ressurreição desta esquerda institucional nas eleições. Ora, as eleições são para o PT e o PSOL aquele momento por excelência de ainda mais descarada institucionalização e maior “vale tudo”. Então, por que Safatle alimenta expectativa de que justamente seriam uma oportunidade para mudar?
Por mais que vivamos uma situação nacional em que a luta de classes em geral, e da classe trabalhadora em particular, está em um momento de lenta recomposição, é mais realista a hipótese de que seja essa a via de “ressuscitar a esquerda”. Não só mais realista mas com um potencial estratégico e de radicalização infinitamente maior: tende a se chocar com esta esquerda institucional quando se coloca. Foi o que se expressou em junho de 2013, e em uma infinidade de lutas parciais que vem ocorrendo, como podemos ver nos exemplos recentes da greve das federais que se enfrentou com o governo Lula, ou na luta da UERJ, onde a reitoria do PT e do PSOL atacou a permanência estudantil e colocou a Tropa de Choque da PM na universidade. Todas as reflexões de vários setores minoritários, incluindo o próprio Safatle, sobre as Jornadas de Junho como uma oportunidade perdida pela esquerda – e a demonização que a intelectualidade petista empreendeu deste processo – corroboram a necessidade de pensar uma alternativa mais disruptiva, que inclusive fosse além disso. Em 2017 tivemos a maior greve geral da classe trabalhadora nas últimas décadas, uma resposta contundente às reformas que queria impor Michel Temer como parte do golpe institucional. Ela foi desviada pela política das burocracias sindicais dirigidas pelo PT. Esta dimensão da análise, ou seja, a luta de classes e particularmente o papel da classe trabalhadora, deveria ser parte fundamental do arsenal de reflexões sobre a saída necessária nesse momento para fugir dos estreitos limites institucionais.
Nestas reflexões acreditamos que Safatle aponta críticas corretas especialmente em três pontos. Sobre a apropriação do PSOL em relação ao discurso capitalista de empreendedorismo, que Safatle definiu como “O empreendedorismo não é um modo de ação econômica, mas sim uma forma de violência social” e agregando que este caminho leva a perder o “sentido de existência” do PSOL. Sobre o diálogo com figuras fascistizantes como Marçal, que Safatle resumiu dizendo “Quando você usa a gramática do adversário para conseguir organizar sua posição, já perdeu”. E sobre o erro brutal de entrada do PSOL no governo: “ou você tem Ministério ou você é oposição”, em alusão ao fato de que o PSOL tem um Ministério com Sônia Guajajara à frente, portanto, integra o governo. Trata-se de uma questão relativamente óbvia (se o PSOL ainda tivesse coerência com uma tradição de esquerda minimamente consequente), mas que é raramente reconhecida pelas referências e correntes do PSOL. Safatle, então, tem esse mérito crítico, ainda que as conclusões derivadas disso pareçam apontar para uma expectativa de uma mudança que nunca vai acontecer no PT e no PSOL.
Assim, suas críticas corretas se inserem em uma lógica que desvaloriza o óbvio: o PT tem um projeto de país de administração do capitalismo e de manutenção desse regime político degradado. Dentro disso, o PSOL tem sido uma cópia fiel e cada vez mais decidida. Safatle ainda prefere almejar uma “disputa de projetos”, quando diz: “Se a esquerda é governo federal, deveria disputar. Nos últimos dois anos poderíamos ter tido ações robustas que indicassem a possibilidade da lógica que encarnamos. Mesmo com a maioria conservadora no Congresso, mesmo que não fosse possível implantá-las, seria um indicativo importante. São quase 16 anos de governos de esquerda no Brasil após a ditadura e não se apresentou um reles projeto de diminuição da jornada de trabalho, nem se tentou reverter a reforma trabalhista do governo Michel Temer (MDB). As instâncias de poder que ocupamos não fazem o que prometeram”. Entretanto, Safatle não explica porque nada disso aconteceu.
Afinal, por quê? Não há nenhuma outra resposta que não seja o fato de que o PT nunca se propôs a fazer nada que não fosse administrar o capitalismo brasileiro. E administrar o capitalismo brasileiro significa conciliação de classes. Por isso, as reformas estão intactas, e por isso temos um Arcabouço Fiscal que é um novo teto de gastos com o anúncio de um novo pacote de Haddad e Tebet para manter essa meta fiscal. As medidas que Safatle aponta como “possíveis” não aconteceram porque não dependem de um governo, e sim da mobilização da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, mas principalmente neste caso porque para vencer as eleições Lula e o PT montaram uma frente “tão ampla” que não sobrou espaço para classe trabalhadora e suas demandas, por que isso era inconciliável com os interesses do capital financeiro, do agronegócio, dos grandes empresários.
Portanto, em pleno ano de 2024, com o primeiro biênio do governo Lula-Alckmin, e 16 anos de governo do PT, não é possível considerar que se trata de um problema de “disputa”, como se tudo o que regesse a política fosse uma questão da “vontade dos que governam”, cabendo a setores da esquerda radical “alertar” o PT e PSOL para que “ressuscitem”. Estamos falando de um plano de ajustes concreto que, este sim, está mais vivo do que nunca: Arcabouço Fiscal que corta da saúde e da educação, BPC que corta dos idosos e PCD´s em situação de extrema pobreza, Plano Safra bilionário ao agronegócio, BNDES financiando as privatizações em São Paulo e o leilão das escolas com Tarcísio à frente, entre tantos exemplos, sem contar toda a manutenção da obra econômica do golpe institucional e do próprio governo Bolsonaro.
Entretanto, o “erro brutal” da entrada do PSOL no governo não é, nem pode ser em nenhuma hipótese, para manter uma independência e construir um projeto alternativo, mas para, como afirma Safatle, “ajudar o governo, pressionando por fora”. Mas uma atuação como oposição de esquerda no parlamento deveria servir não para pressionar por fora e sim para construir uma força extraparlamentar com uma política de independência de classes. Do contrário – salvas as diferenças -, como apontou Rosa Luxemburgo no caso do “ministerialismo socialista” de Millerand em um governo burguês no começo do século passado, os pretensos socialistas terminam virando apêndices do governo.
Não é possível fechar os olhos para o fato de que o PSOL fez campanha ativa em Belo Horizonte por um candidato que serviu em um batalhão de tortura da ditadura militar (em Belém, apoiou o candidato da oligarquia da família Barbalho). Quando os dados das eleições comprovaram que toda essa política de conciliação entregou o país ao Centrão de Kassab e ao PL de Bolsonaro. Lembrando: as coligações do PT com estes partidos foram inúmeras, somente com o PL de Bolsonaro o PT esteve em 85 cidades. Isso remonta a superar a resposta fácil ao enfrentamento à extrema-direita, transformado em fim em si mesmo na atualidade, como forma de negar a possibilidade de uma saída revolucionária.
Por isso também os exemplos internacionais são elucidativos. O balanço sobre seu apoio acrítico ao Syriza na Grécia, ou na expectativa com Boric no Chile, que já dialogamos em momentos anteriores, poderiam levar a uma conclusão de que sempre falha a expectativa de que a esquerda institucional “se radicalize”. No entanto, a interpretação de Safatle sobre o caso francês é mais um exemplo, sobre o qual ele declarou: “A esquerda francesa mostrou como se luta contra o fascismo. Montou um programa consistente, fez uma aliança cuja hegemonia foi definida pela ala mais radical e venceu as eleições contra todas as projeções. Em momento de extremos, há espaço para uma esquerda que se afirma como tal” [tweet de 7 de julho] Passaram-se 2 meses e meio para que Macron, que fez parte desta “frente popular” que segundo Safatle seria o exemplo da esquerda internacional, nomeasse Michel Barnier como primeiro ministro, com o aval do Rassemblement National de Marine Le Pen.
Na Argentina, a atuação dos parlamentares da Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade (FIT-U, pela sigla em espanhol) encabeçada pelo PTS com Myriam Bregman e Nicolas Del Caño como principais porta-vozes são um exemplo que vai no sentido oposto da conciliação de classes brasileira ou da subordinação de uma frente popular francesa como apontamos acima. Parlamentares que atuam sem tréguas com os partidos da ordem e fortalecem uma força extrema-parlamentar nas fábricas, hospitais, escolas, universidades, bairros e movimentos sociais para enfrentar a extrema-direita de Milei.
Neste sentido, consideramos que a crítica aguda de Safatle ao papel trágico de Boulos nessas eleições, à esquerda do conjunto do PSOL e claramente deixando parte das correntes desnorteadas, carece de um sentido prático concreto no que diz respeito à verdadeira ruptura que é preciso levar adiante e que a intelectualidade precisaria tomar coragem para dar um passo além. Ruptura com um projeto de país de administração do capitalismo para uma “agenda alternativa” que seja abertamente anticapitalista e sem conciliação, ruptura imposta com urgência pela crise climática e ambiental. Num momento em que o PT, já de joelhos ao capital, anuncia que rumo a 2026 fará ainda mais alianças com os partidos de direita do Centrão, não é tempo de apostar nesta ressurreição, e sim apostar na classe trabalhadora e sua auto-organização.