Tay Coelho
Nesse breve texto, a partir do resgate da história por trás da nossa moradia, pretendo recuperar a história apagada da Geração Borgeana, a geração de estudantes que fizeram parte da ocupação Borges da Costa e impuseram pela luta o direito da moradia para a UFMG e a Fump. Espero contribuir para a síntese de uma conclusão que nos leve a organizar nossas demandas desde a moradia, mas da universidade e da juventude de conjunto, de forma independente da reitoria, dos governos e da Fump, confiando na força da nossa luta auto organizada ao lado des trabalhadores.
Assistência financeira aos frangalhos, uma verdadeira crise com a saúde mental, casos de suicídio, insegurança alimentar, exploração des estudantes como mão de obra precária em freelancer, dias sem água, tutela monárquica sobre o uso dos espaços coletivos e transporte precário. A moradia hoje se desenrola nesse cenário que é resultado direto da gestão da reitoria da UFMG e da Fump. Quando confrontadas, respondem com a tradicional justificativa já conhecida por todes na moradia: “não temos orçamento”. O fato é que os únicos que vêem e decidem sobre esse orçamento são a própria Fump e a reitoria, que longe de saberem as reais prioridades da universidade, como a fome des estudantes, administram o rombo orçamentário na educação de acordo com Arcabouço Fiscal do governo Lula/Alckmin, levantando catracas nos prédios ao invés de garantir bandejão nos finais de semana. Depois de furar o filtro racista e elitista do vestibular, e muitas vezes abandonar tudo que conheciam em suas antigas cidades, es estudantes se deparam com esse brutal descaso. Por isso é preciso mostrar que, da mesma forma que foi a própria moradia em que vivemos hoje, nada nunca foi nos dado, arrancamos tudo com muita luta.
Nesse breve texto, a partir do resgate da história por trás da nossa moradia, pretendo recuperar a história apagada da Geração Borgeana, a geração de estudantes que fizeram parte da ocupação Borges da Costa e impuseram pela luta o direito da moradia para a UFMG e a Fump. Espero contribuir para a síntese de uma conclusão que nos leve a organizar nossas demandas desde a moradia, mas da universidade e da juventude de conjunto, de forma independente da reitoria, dos governos e da Fump, confiando na força da nossa luta auto organizada ao lado des trabalhadores, para que possamos impor que elas sejam atendidas, para que nenhum estudante passe fome, se mate ou seja expulso de casa por uma gestação.
De 1959 a 1998, a herança de luta por moradia estudantil na capital mineira
Em 1959, a partir da união de 4 entidades estudantis, a União de Estudantes Pré-Universitários (UEPU), a União Colegial de Minas Gerais (UCMG), a União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais (UEE) e o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFMG, nasce o Movimento de Fundação da Casa do Estudante (MOFUCE), não se dissolvendo, mas criando esta quinta entidade independente das demais. É preciso ter em mente que nesse período da história as nossas entidades não estavam tão subordinadas às diretorias, reitorias ou mesmo aos governos, como nosso DCE dirigido pelo Afronte! e Juntos (PSOL) na UFMG, que ocupa um ministério no atual governo de conciliação de classes, Lula/Alckmin.
O objetivo do MOFUCE era apenas um: construir uma moradia estudantil que pudesse abrigar desde secundaristas até graduandes de baixa renda na grande BH para que pudessem concluir seus estudos, inserido num momento em que Minas Gerais era um dos estados com a pior política de moradia estudantil que sequer existia!
Após dois anos de arrecadação financeira independente por parte des estudantes, o MOFUCE compra um lote em um leilão da própria UFMG e começa os planos da primeira casa do estudante de Minas Gerais, enquanto estava na entidade como diretor Newton Cardoso, figura importante para entender o que foi a traição desta casa do estudante. Ao mesmo passo que avançava-se a construção da moradia dos estudantes, avançava também as investidas da burguesia contra o ascenso da classe trabalhadora, dos camponeses e do movimento estudantil. Com temor ao levante social, queriam, com o apoio dos EUA, frear a situação pré-revolucionária que se desenvolvia na situação nacional contra a erosão dos salários, as péssimas condições de estudo e a precarização da vida no geral dentro do país.
Tão logo a ditadura militar se instala no Brasil com a traição histórica do PCB, o MOFUCE sente esse profundo golpe na própria face. Em novembro de 1964 é sancionada a Lei Suplicy de Lacerda que colocava na ilegalidade a UNE e as UEEs e submetia todas as instâncias de representação estudantil ao MEC. Também o Decreto-Lei 228 de 1967, que estabelecia o fim das organizações estudantis e o repasse de seus patrimônios compulsoriamente às Universidades Federais do respectivo estado, que disporiam do uso destes patrimônios ao DCE, já instrumentalizados pela repressão militar.
O então diretor da época, Newton Cardoso, foi um traidor dos estudantes do MOFUCE. Apesar desta já ter sido dissolvida em 1967, em 1971 ele assina como membro da diretoria uma nova extinção da entidade junto a criação de outra – o Instituto Educacional de Ensino – e não bastasse a autodeclaração como sucessor do MOFUCE, o IEE, presidido por Newton Cardoso, irá doar a propriedade da Rua Ouro Preto 1421 – em que a Casa do Estudante de Minas Gerais havia se estabelecido – para o Projeto Rondon (um projeto criado e coordenado pelo regime militar), passando as chaves do imóvel diretamente para as mãos do Coronel do Exército José Geraldo Carneiro. Uma traição brutal à luta dos estudantes.
Se enfrentando com toda a repressão da ditadura, es estudantes sempre estiveram na linha de frente das lutas desse período da história, como as passeatas de milhares feitas ao dia seguinte do assasinato do estudante Edson Luis. Esse período também atravessava o espírito desses estudantes contagiados pelo levante do maio de 68 na França, com panfletos diretamente inspirados nas subversivas artes da juventude francesa.
Após todo o período de 20 anos desde a dissolução do MOFUCE em 1967, os estudantes ocuparam novamente um prédio, agora o prédio do hospital Borges da Costa, na Faculdade de Medicina, que marcaria uma das maiores experiências da auto organização des estudantes na história do movimento estudantil de Minas Gerais. Apesar da ausência de registros escritos, ao menos duas outras ocupações de moradia estudantil foram feitas ao final da ditadura além do Borges. Em 1977, estudantes ocuparam o prédio do Hospital Borges da Costa. Em 1988, ocorreu outra ocupação, num prédio nos terrenos da antiga FAFICH, no bairro Santo Antônio. A ocupação Borges da Costa durou 21 anos, 1977-1998, e durante toda sua existência tornou-se um centro de discussão de política e de cultura. Um espaço organizado pelos estudantes de forma independente da reitoria da UFMG e da Fump – que na época já contavam com décadas de atraso na promessa de construir uma moradia estudantil, causando a evasão da universidade des estudantes mais carentes, principalmente os que abandonaram tudo e vieram de outros estados. O lar desses estudantes era recorrentemente preenchido por assembleias, manifestações, arte, cultura, política e festas. Os próprios estudantes organizavam cada detalhe da casa, desde receber novos estudantes, organizar o que seria cada espaço, até a gestão e a resolução dos conflitos internos. Pesquisando, consegui reunir fotos que remontam a todo esse período, deixarei essas relíquias ao final do texto.
Durante todo esse período a Fump e a reitoria não haviam se comprometido em nada para garantir o direito à moradia para es estudantes: o fato é que a própria Fump usava a ocupação Borges da Costa nos conselhos universitários como “política de moradia” para lavar suas mãos ao invés de realmente atender essa demanda. Essa demagogia escancarada vai colocar a cereja no bolo da revolta estudantil.
O final da Borges não se deu no marco da construção de uma moradia para esses estudantes, pelo contrário, foi em base a brutal repressão da polícia a mando direto da Fump e da UFMG, em 1998. A Fump na época anunciava que até o final do ano 2000 já se teriam 400 vagas de moradia para os estudantes, quantidade que para a época já era ridiculamente baixa, e com essa promessa investiu na desocupação e despejo dos estudantes do prédio, que, segundo eles, seria feita de maneira “pacífica”. Na noite do aviso de despejo a polícia invadiu o prédio, mais de 50 policiais munidos de armas e cassetetes agrediram “pacificamente” os estudantes que resistiram heroicamente, tendo depoimentos de estudantes em jornais da época: “Fui arrancada do quarto e arrastada até o ônibus da polícia. Não me deixaram vestir roupa. Nos bateram e nos insultaram, mas resistimos sempre com dignidade”. A intransigência des estudantes era tamanha que neste dia a polícia precisou levar junto de si o corpo de bombeiros, porque, sabendo da ameaça de desalojamento, es estudantes decidiram que se fossem expulsos iriam incendiar o lugar. O truco que es estudantes colocaram sobre a mesa não era um blefe: ao final do despejo, encontraram em um banheiro da Borges material inflamável e explosivo, a Geração Borgeana não se intimidava facilmente.
Somente 3 anos depois, em 2001, é que se efetivou realmente a construção de uma moradia estudantil, a atual MOP1 no bairro Ouro Preto. Mas foram durante estes 3 anos que expulsaram vários dos que faziam parte da chamada Geração Borgeana e que já não tinham mais casa pra morar, 3 anos após a brutal repressão desses estudantes que não queriam esperar pela boa vontade da Fump e da reitoria, um verdadeiro exemplo que nos materializa o porquê que a nossa luta não pode se subordinar a essas instituições. Há um relato emblemático de um estudante que estava se formando e negava desocupar o prédio que transparece qual era a cultura que a Geração Borgeana desenvolvia no seio da sua convivência, também retirado de um jornal da época: “Aqui tudo cheira a arte. Temos grandes talentos aqui dentro. Os quartos são amplos e arejados e é isso que importa”, completa dizendo “É uma questão política. temos de pensar em nossos colegas, que a partir do ano que vem não vão poder estudar porque não terão onde morar”.
Toda a forte intransigência e subversão da Geração Borgeana faz parte da história dos estudantes da UFMG. Um enorme legado que demonstra como nada nos foi dado, tudo, até mesmo o direito básico de ter onde morar, só foi conquistado porque foi arrancado pela força da nossa luta e auto organização. A experiência dos anos de luta por moradia na nossa universidade demonstra por diversas vias os motivos pelo qual não podemos ter ilusões em reuniões ou acordos com a reitoria, o governo federal ou a Fump, como fomentam o PSOL e o Correnteza com muita obediência a estas instituições através de suas gestões nas nossas entidades estudantis. Por que até mesmo a conquista pelo direito à moradia, que só foi arrancado pela luta independente dos estudantes, nas mãos da Fump e da reitoria da UFMG se mostra insuficiente para atender às verdadeiras demandas dos estudantes. Lutemos por uma assistência estudantil sob controle des estudantes, auto organizado democraticamente através de delegades eleites, pelo fim da Fump. Contra qualquer ceticismo alimentado pela ideologia neoliberal que busca se consolidar nas nossas cabeças através de saídas individuais e atomizantes, a Borges da Costa é um exemplo histórico do que podemos arrancar quando nos organizamos e lutamos coletivamente de forma independente da reitoria e dos governos.
Retomar a história deve servir para que não precisemos partir do zero para pensar o hoje. Entre 2019 até os dias de hoje, 5 anos após, cerca de 2 mil estudantes deixaram de ser assistidos pela assistência estudantil nas mãos da Fump e da reitoria. Realidade que é mantida e aprofundada com o Arcabouço Fiscal do governo Lula/Alckmin que estrangula o orçamento das universidades para pagar a fraudulenta dívida pública. Da precarização da vida da juventude aos 0% que o governo da Frente Ampla tem a oferecer para os técnicos e professores que estiveram em greve nos últimos meses, o sistema capitalista só tem a nos oferecer misérias, uma guerra no coração do imperialismo europeu e um genocídio na Palestina. Por tudo isso, é central retomar na história o papel político des estudantes para construir uma nova tradição de movimento estudantil na UFMG. Nas eleições para CAs que ocorrem nesse semestre particular, onde as direções das atuais gestões se subordinam às diretorias repressoras para conduzir eleições apressadas e despolitizadas, nós da juventude Faísca Revolucionária queremos retomar essas ideias que apresentamos aqui para construir uma outra tradição que retome os elementos mais avançados da nossa história para o hoje.
Durante a pesquisa, a página do facebook Pelos corredores da nossa casa da Almôndega Filmes, produtora de um documentário sobre a Geração Borgeana, foi fundamental para toda a produção desse texto, lá coletei alguns relatos também de pessoas envolvidas em algum nível com a experiência da ocupação. Aqui trago alguns comentários retirados de lá:
“Geração Borgeana, meu pai morou no Borges já nos anos finais, ele estava lá na ‘desocupação’. Na ocasião eu era criança e sempre ficava hospedada lá com ele nas férias! hahaha… me lembro mto daqueles corredores. E eu, morei na Moradia Ouro Preto I, fruto da luta dele.”
“Sou meio sentimental, dá uma dorzinha no peito, não morei no Borges mas frequentei e conheci várias pessoas da época…”
Aqui compilo imagens que remontam os dias de poesia e de resistência da infame Geração Borgeana, e para aqueles que queiram tocar nessas memórias perdidas, uma das paredes do CAHIS – Centro Acadêmico de História na UFMG – é preenchida com uma pintura que representa um incêndio que ocorreu na Borges, essa informação só consegui por meio da oralidade.