Revista Casa Marx

Nora Krawczyk: “a implementação das escolas cívico-militares é uma forma de privatizar a escola pública”

Redação

Entrevistamos a professora e pesquisadora da Faculdade de Educação da Unicamp, Nora Krawczyk.

Ideias de Esquerda: Em recente artigo assinado por você e pela Marcia Jacomini, vocês dizem que há uma “blitzkrieg” de Tarcísio contra a educação, um termo que é utilizado para expressar uma tática militar ofensiva. Você pode explicar o que vocês querem dizer com o uso desse termo?

Nora Krawczyk: O termo “blitzkrieg” refere-se a uma doutrina militar que se caracteriza por ataques rápidos e de surpresa, com o intuito de evitar que as forças inimigas tenham tempo de organizar sua defesa. Esta é a tática utilizada por Tarcísio e Feder para implementar a privatização da escola pública no estado de São Paulo. Todos os dias aparece uma nova privatização de algum bem público do Estado, num ritmo e sem debate público sem precedentes, às vezes até de forma sigilosa.

No caso da educação, é um conjunto de mudanças que pretende ressignificar o sentido público da escola, deixando a comunidade escolar sem margem de manobra para promover uma escola pública democrática, reflexiva, que ofereça as ferramentas e os conhecimentos para que o estudante questione sua condição social e que é passível de mudanças.

A escola pública está sendo atacada através de diferentes frentes: no interior da escola e na gestão do sistema educacional estadual. No artigo ao qual vocês se referem, nós analisamos duas das políticas de privatização da escola pública que estão em implementação: o que chamamos de plataformização da gestão e processo de ensino aprendizagem e o leilão das escolas públicas na bolsa de valores. Mas, sem dúvida, podemos nos referir a outras: as parcerias para oferecer a educação técnico-profissional, a expansão das escolas cívico-militares, as mudanças na carreira docente, entre outras.

IdE: Sobre o processo de plataformização na educação, vocês afirmam que a imposição do uso de plataformas padroniza o processo pedagógico e que há uma intensificação do controle do trabalho docente. Quais são os efeitos disso para o trabalho pedagógico do professor e para a aprendizagem dos estudantes?

Nora Krawczyk: É importante esclarecer que não se fala de uso da tecnologia como recurso didático a serviço de um projeto educativo definido pelo conjunto dos professores da escola. O uso da tecnologia entrou nas escolas para adequar a educação escolar à plataformização do ensino e da gestão a serviço das corporações.

Essa tem sido a política na qual a atual Secretaria tem se realmente empenhado. As escolas paulistas receberam este ano um pacote digital coordenado pelo Centro de Mídias (CMSP) com 11 plataformas digitais para uso de professores e estudantes.

O CMSP proporciona aulas digitais dos componentes (a nova nomenclatura para as disciplinas) da Formação Curricular Básica para que os professores as projetem no lugar de ensinar a partir de metodologias próprias, e um conjunto de atividades no formato de questões objetivas que os estudantes recebem diretamente pelo aplicativo para responder nas suas casas no prazo de dois dias após a realização da aula correspondente. As tarefas são corrigidas pela própria plataforma e compõem o processo avaliativo e a nota do bimestre atribuída pela inteligência artificial.

São vários os exemplos que podemos citar que mostram a intencionalidade de amarrar mãos e pés a autonomia e a criatividade docente e padronizar o trabalho pedagógico. A Inteligência Artificial (IA) passa a conduzir o processo de ensino-aprendizagem.

No caso, por exemplo, da disciplina Redação, a plataforma contém o tema e o roteiro da redação. Após inserida pelo estudante no aplicativo, a Inteligência Artificial faz uma primeira correção que equivale a 40 pontos. O restante é realizado pelo professor.

Outro exemplo é a plataforma Leia SP. Contém um conjunto de livros, avalia o progresso de leitura pelo tempo que o estudante demora e perguntas obrigatórias, que acompanham cada livro, para serem respondidas pelos alunos. É apresentada ao professor como uma solução digital para que possa fazer um “acompanhamento correto de sua turma”.

Há dois casos de componentes curriculares que são paradigmáticos na plataformização da educação paulista, Tecnologia e Robótica e Orientação de Estudos. Todas as aulas são realizadas nas respectivas plataformas, Alura e Tarefa SP. Ou seja, estudante e professor não têm nenhuma autonomia na definição dos conteúdos e na organização destas aulas, foram transformados em “consumidores” de “aulas prontas”.

O processo formativo se transforma num conjunto de ações pragmáticas e instrumentais. O professor não tem nenhuma autonomia na definição dos conteúdos nem na organização de suas aulas, diminuindo ou anulando o espaço de participação, de consulta e reflexão, danificando a construção do pensamento crítico dos estudantes.

Não há, por parte da Seduc, uma preocupação com a qualidade do ensino. Geralmente, as cobranças pelo uso das plataformas visam apenas à geração de dados quantitativos e à melhora dos dados do SARESP, através da repetição de exercícios que reproduzem o conteúdo das provas.

Além disso, o CMSP conta com outras cinco plataformas usadas para registro das atividades de gestão pedagógica da escola. Através delas é possível a verificação diária pela direção da escola, pela diretoria de ensino e pela Secretaria de Educação da frequência dos alunos e do uso das plataformas na escola em tempo real, intensificando o controle do trabalho docente e da aprendizagem dos estudantes, modelado pela Secretaria. Os diretores são obrigados a assistir pelo menos uma aula por semana de cada disciplina e registrar um relatório no sistema.

A perda da já restrita autonomia das escolas nos governos do PSDB alcançou um nível de radicalidade extrema no governo de Tarcísio de Freitas-Renato Feder.

Ao mesmo tempo, a própria SEDUC abandonou sua responsabilidade do conteúdo dos vídeos para ser ensinado nas escolas. Um caso interessante é a plataforma Khan Academy que possui uma equipe no Brasil para produzir aulas de diferentes disciplinas em forma de vídeos, exercícios para os alunos e material para os professores alinhados à BNCC.

A plataformização da educação não significa só interesses mercantis pela apropriação de recursos públicos por empresas privadas, o que já é inadmissível. Mas a orientação do trabalho docente, das práticas educativas e de gestão para a realização de metas alheias à realidade escolar, definidas pelos operadores das plataformas e o setor social e econômico que representam, o que é chamado gerencialismo de plataformas.

E, também, não podemos esquecer que significa uma reconfiguração da gestão educacional que se baseia na gestão de dados, como principal e única fonte de informação e controle, que diferentes autores têm chamado de capitalismo de vigilância, capitalismo de plataformas.

Também não podemos esquecer que é um processo de (des)formação da juventude brasileira para esta nova fase deste estágio do capitalismo, que, como afirma o economista alemão Klaus Schwab, o alcance da atual revolução tecnológica deu origem a mudanças econômicas, sociais e culturais de proporções tão fenomenais que é quase impossível prevê-las. Não se trata apenas de mudar “o que” e “como” fazemos as coisas, mas também “quem somos”.

IdE: Como vocês mostram as escolas paulistas impuseram um pacote digital coordenado pelo Centro de Mídias (CMSP) com plataformas digitais que são operadas por corporações do setor privado com contratos milionários. Você pode nos dizer quais são essas corporações? Quem ganha com a plataformização da educação?

Nora Krawczyk: Durante a pandemia da Covid – 19, Rosselli Soares da Silva, então da Secretaria de Educação do governo Doria, implantou uma ferramenta digital chamada Centro de Mídias (CMSP) para auxiliar, ao vivo, os alunos e os professores das escolas públicas do estado de São Paulo com transmissão de aulas on-line e outros aplicativos. Podemos dizer que a necessidade de criar mecanismos de comunicação entre a Seduc, as escolas e os alunos, devido ao isolamento produzido pela Pandemia da Covid- 19, foi o “disparador” do processo de plataformização que hoje as escolas paulistas do ensino fundamental e médio estão vivenciando. Mas do que isso, serviu para justificar um processo que já estava sendo delineado tanto pelas empresas de tecnologia em educação quanto pelo próprio governo. De fato, a engenharia de Centro de Mídias Rosselli já existia antes da pandemia. Ele o importou do Amazonas, implementado durante sua gestão como secretário de educação.

A partir de 2020, evidenciamos um crescimento exponencial de empresas de tecnologia que se orientaram a produzir produtos para educação e outras que surgiram como especialistas em tecnologia educativa. Podemos dizer que não é a educação escolar que busca ferramentas digitais para que seus objetivos específicos sejam mais bem alcançados, mas, ao contrário, são grandes empresas digitais que buscam mais um espaço no mercado, neste caso a educação. Este é um processo não só brasileiro, mas mundial. A maioria das plataformas digitais, que hoje chegam à escola paulista, é operada por corporações do setor privado com contratos que destinam recursos públicos para essas empresas.

Algumas são muito fáceis de identificar, porque seu nome identifica a própria plataforma, outras aparecem como elaboradas pela própria SEDUC. Vou citar alguns exemplos:

Alura – plataforma para o estudo de tecnologia. Segundo o site da empresa, é uma das maiores plataformas de cursos on-line de tecnologia do País. Alguns de seus principais parceiros são Endeavor, Google for Startups, Amazon, Microsoft, IBM e Mapfre.ma.

Education First – EF – a plataforma on-line para o ensino do inglês. É uma escola de educação internacional sueca que começou como uma escola de idioma on-line com filial em São Paulo, tem também escola de bussiness e plataformas para o sistema público.

É associada plena da Belta (Brazilian Educational Travel Association). A mesma família também é proprietária da Hult International Business School, muito reconhecida pelos seus programas de MBA e bacharelado.

Me Salva!! – plataforma on-line para preparar os vestibulares. É uma plataforma que surgiu em 2012 no Rio Grande do Sul e oferece cursos on-line. Possui parcerias com instituições como Endeavor Brasil, Fundação Lemann, E.bricks Ventures, Grupo RBS, Kairos Society e Universia.

Já comentei da plataforma Khan Academy – plataforma on-line que oferece aulas gravadas, resumos e exercícios de matemática. É uma organização sem fins lucrativos norte-americana, fundada em 2008 com produção de vídeos para diferentes disciplinas. No Brasil, os vídeos da plataforma foram todos traduzidos para o português através da Fundação Lemann. Atualmente possui uma equipe no Brasil para produzir aulas de diferentes disciplinas em forma de vídeos, exercícios para os alunos e material para os professores alinhados à BNCC. Segundo informações no seu site, hoje oferece seu serviço a 50 Secretarias de Educação. Alguns de seus principais parceiros fundadores são Bill and Melinda Foundation, Google, Fundação Lemann, The O’Sullivan Foundation, Fundación Carlos Slim, Valhalla Charitable Foundation e Reed Hastings.

Painel BI – Business Intelligence – ESCOLA TOTAL. É um conjunto de ferramenta/software Business Intelligence (BI), elaborado pela empresa Bedu.Tech, para gerenciar as escolas, oferecendo-lhes em tempo real dados para a imediata tomada de decisão e planejamento. Dispõe atualmente de indicadores de frequência dos alunos – Aluno presente, e a frequência de entrada nas plataformas Prova Paulista, Redação Paulista, Tarefas SP, Prepara SP e Khan Academy.

IdE: Em outro artigo de 2023, intitulado “Educação: lobby pela terceirização volta à cena”, você desenvolve que há uma relação entre as chamadas “escolas charter” dos Estados Unidos e as políticas que
buscam implementar escolas privatizadas e até militarizadas no Brasil. Pode nos explicar essa relação?

Nora Krawczyk: O termo charter em inglês significa avião alugado por contrato para fim específico, principalmente para viagens de turismo. Começou a ser utilizado nos EUA para se referir às escolas sustentadas com financiamento público com gestão privada, que pode ser de uma empresa ou organizações sociais e/ou religiosas, por exemplo. E, por tanto, atua como uma escola privada.

Esse modelo de escola vem sendo divulgado como experiência exitosa pelos organismos internacionais e, no Brasil, principalmente por uma fração do empresariado que defende a renovação da racionalidade organizacional da escola pública em nosso país, tendo como referência a gestão empresarial. Este modelo surgiu no Brasil no estado de Pernambuco, liderado pelo Instituto de Corresponsabilidade Educacional – ICE, entidade sem fins lucrativos formada por um grupo de empresários que, posteriormente, passou a ser uma importante consultoria para implementar o modelo em outros estados. Como coloquei no artigo, vem crescendo no Brasil, de “forma silenciosa”, no formato de parcerias público-privada (PPP).

Há pouco meses, Tarcísio anunciou o primeiro leilão pelo qual o governo estadual entregará à iniciativa privada a construção, a manutenção e conservação, a gestão e operação dos serviços não pedagógicos de 33 novas unidades escolares escolas de tempo integral, com uma perspectiva de atendimento de 35.000 alunos de ensino fundamental e médio; concessão que valerá por 25 anos.

O objetivo enunciado é aumentar as vagas, visando reduzir o ensino noturno e ampliar o ensino integral. Esta é uma política que já vem sendo implementada não só no estado de São Paulo e tem prejudicado os estudantes trabalhadores. As pesquisas mostram que as escolas de tempo integral, principalmente, as escolas de ensino médio, têm menor demanda do que as escolas de tempo parcial e que, quando elas se transformam em tempo integral, os alunos trabalhadores se transferem para o ensino noturno. Uma política, que pode ter até boas intenções, acaba produzindo um processo de exclusão e segmentação entre as escolas da rede pelo seu alunado e qualidade do serviço, já que as Secretarias de Educação focam principalmente nas escolas de tempo integral. Este é um tema bastante polêmico e, sem dúvida, não exclusivamente pedagógico, mas principalmente socioeconômico que a política educacional não pode negar.

Voltando à licitação para privatizar a gestão de escolas do estado de São Paulo. Entre a prestação dos serviços chamados não pedagógicos que serão realizadas pela concessionária ou por terceiros por ela contratada consta o item “atividades de vida diária”, que envolve o apoio aos alunos que não conseguem acessar com autonomia as instalações escolares, como por exemplo: arrumar e cuidar da higiene pessoal desses estudantes. Este tema vem sendo polêmico faz tempo. As escolas não têm pessoas especializadas para acompanhar os alunos com algum tipo de deficiência (física, intelectual, visual ou auditiva), e o processo de inclusão fica “a meia boca”. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência define que o poder público deve assegurar a atuação de profissionais de apoio escolar para garantir o direito à educação, o que é cumprido pela Secretaria da Educação. O governador tem, de alguma forma, autorizado a privatização deste apoio escolar, autorizando as famílias a ajudar na escola e/ou contratar um profissional que acompanhe seus filhos em seu dia a dia na escola. É lamentável que o governo reduza o processo de inclusão de estudantes deficientes nas escolas regulares a “atividades da vida diária” não pedagógicos.

Segundo publicação no Diário Oficial do Estado, a sessão pública de abertura das propostas acontecerá em 25 de setembro na sede da Bolsa de Valores, em São Paulo. É a abertura de uma concorrência internacional, que, segundo o governo de São Paulo, se dará na modalidade contratual de PPP e dela podem participar sociedades empresariais, fundos de investimento e outras pessoas jurídicas, brasileiras ou estrangeiras isoladamente ou em consórcio. A prestação dos serviços será realizada pela entidade parceira ou por terceiros por ela contratados. Fica claro na minuta que o investimento público será de 1,6 bilhões, mas não está claro, da mesma forma, qual será o lucro das empresas que ganharem a concorrência.

Na experiência dos EUA, o lucro das corporações se dá de forma não explícita, através dos chamados serviços de terceiros: seja pela empresa responsável pela construção ou aluguel do prédio, seja pela compra de equipamentos e outras formas de encobrimento. O que acontecerá em São Paulo? Ainda não podemos prever…

Sobre a outra parte da sua pergunta, no artigo que você cita eu chamo a atenção que a implementação das escolas cívico-militares é uma forma de privatizar a escola pública no modelo de escolas charter ou de gestão compartilhada, como se fala no Brasil, mas que, neste caso, no lugar de ser uma corporação empresarial ou entidade religiosa é uma corporação militar (a polícia militar).

A diferença é o formato jurídico desse “compartilhamento”. No caso das escolas públicas de gestão privada (charter), é um contrato do Estado com uma entidade privada pelo qual se definem as responsabilidades e as atribuições de cada um. No caso das escolas de gestão militarizada, é um projeto de lei que o governo apresenta ao órgão legislativo correspondente para criar escolas cívico-militares, pela qual delega responsabilidades e atribuições à polícia militar. Em ambos os casos, as escolas continuam sendo escolas da rede pública estadual e/ou municipal.

É importante que tenhamos claro que a gestão, a administração e a condução pedagógica das escolas não são isoladas umas das outras. Isso é uma descaracterização da função da equipe diretiva, chamada de gestores da escola. Ao longo das últimas décadas, a equipe diretiva vem perdendo espaço no campo pedagógico devido ao aumento sistemático de atividades burocráticas. A racionalidade pedagógica, que permite a construção de um projeto pedagógico coletivo da escola, deve estar presente em todos os espaços e ser inerente aos trabalhadores da escola, porque a escola educa (ou deseduca) a cada momento, em qualquer decisão tomada e em atitudes de convivência escolar. A legitimação das práticas de gestão empresarial como eficientes para qualquer instituição, seja uma empresa ou uma escola, e a desqualificação, perante a opinião pública da gestão pública, “autorizam” que se relegue gestão escolar a uma empresa. Por outro lado, a desvinculação de dinâmicas de convivência escolar e a responsabilização às dinâmicas escolares pela violência que, nas últimas décadas elas têm sofrido, acabam justificando a entrada da polícia militar nas escolas para impor uma disciplina que pode ser adequada para os quartéis e seus objetivos, mas nunca para educar nossas crianças e juventude.

IdE: O governo Lula fez alterações, mas manteve o novo ensino médio, que você afirmou em artigo que “não tem conserto”. Além disso, o governo também vai financiar via BNDES as escolas privatizadas do governo de São Paulo e está aplicando o chamado arcabouço fiscal, uma política de ajuste fiscal. Como você avalia a política do MEC de Camilo Santana e em que medida converge com esse projeto de educação privatizado e plataformizado?

Nora Krawczyk: Sem dúvida, estamos vivendo uma crise política no Brasil extremamente séria que se expressa, entre outras coisas, que um governo de centro-esquerda, no qual muitos de nós colocamos todas nossas expectativas, esteja participando de políticas econômicas e educacionais bastante contraditórias. Duas coisas não podemos esquecer. A primeira é que Lula ganhou as eleições para presidente, mas tem que conviver com um Congresso majoritariamente de direita e extrema direita, além de profundamente conservador e corrupto. A segunda, consequência da primeira, é que precisou incluir em seu governo alguns partidos da direita não bolsonarista, o que não é gratuito. E o custo está aparecendo agora.

Um desses custos é o arcabouço do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que realmente traz elementos de ajuste fiscal. Parece que era isso ou o malfadado teto de gasto que deixaria o governo manietado. Há uma falácia fartamente divulgada pela mídia corporativa que “governo não pode gastar mais do que arrecada”, muitas vezes acompanhada pela comparação tosca entre orçamento familiar e orçamento de governo. Propositalmente esquecem que gasto de governo, quando bem direcionado, gera investimento privado, gera emprego, e tudo isso amplia a arrecadação de impostos. Não vou me alongar sobre isso, porque não é minha área, mas me permito acrescentar que essa falácia já está desmontada desde os anos 1930 e, mesmo assim, os “especialistas” consultados pela mídia continuam insistindo no mesmo assunto.

O BNDES faz muitos anos que tem uma linha de financiamento para as PPP (parcerias público-privadas), o que não justifica que esteja financiando as escolas de gestão privada do Tarcísio de Freitas e, em outros estados. Afinal, já há várias décadas o antigo BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento) recebeu o “S”, de social. Pergunto: quais aspectos os técnicos desse banco examinam para ver se determinado projeto atende aos critérios do “social”? Geração de emprego? Melhoria da infraestrutura educacional? Sinceramente, considero que, ao se tratar de uma área sensível, como é a educação, os protocolos seguidos não podem ser superficiais e tenho certeza de que os pesquisadores da área de educação das universidades estariam prontos a colaborar com a revisão desses protocolos. Além disso, não me animo a afirmar qual é a opinião do Ministro Camilo Santana sobre a privatização da gestão das escolas públicas.

Sobre a atual política do MEC, gosto sempre de lembrar que o ministro Camilo Santana foi governador do Ceará, um dos estados que mais adotou o modelo educacional pregado pelas corporações empresariais e pelos organismos internacionais.

Não é diferente o comportamento do Ministro agora no MEC. Isto ficou muito claro com a reforma do ensino médio, uma reforma implementada durante o governo Temer e que Camilo nunca aceitou nem pensar na possibilidade de sua revogação. Sem dúvida, a pressão do empresariado tem sido enorme, mas também não foram pequenas as manifestações dos estudantes e movimentos sociais dos transtornos que ela tem produzido nas escolas e na formação dos jovens.

Ainda assim, graças em grande parte à pressão exercida por estudantes e professores, o MEC introduziu algumas mudanças importantes nesse assim chamado “Novo Ensino Médio”, tentando satisfazer “gregos e troianos”. Chegando à Câmara em dezembro do ano passado, a relatoria do projeto foi entregue ao deputado Mendonça Filho (União Brasil), que, como ministro da Educação de Michel Temer, tinha participado da implantação desse modelo retrógrado de Educação e que, naturalmente, ignorou todo o trabalho a que o MEC tinha se dado. Não adiantou nem mesmo as melhorias feitas no Senado, porque, de volta à Câmara, o relator voltou ao que era antes e foi aprovada a “Lei do retrocesso”, profundamente conservadora. Cabe ainda relatar que o movimento Todos pela Educação, hoje a mais importante coalizão em defesa do modelo educacional das corporações empresariais, praticamente comemorou o trabalho de desmonte feito na Câmara.

Com relação à plataformização que você pergunta, posso lhe dizer que faz muitos anos que a Fundação Lemann, do bilionário Jorge Paulo Lemann e segundo homem mais rico do País e um dos mais ricos do mundo, tem tentado influenciar o governo federal nos investimentos com educação digital e criação de um modelo de política de conectividade em todas as escolas públicas do País, influência que se manteve com o governo atual. Essa fundação, que claramente representa os interesses ideológicos e financeiros das corporações nacionais e internacionais, tem uma presença cada vez mais forte na política educacional brasileira através de diferentes frentes. Um exemplo disso foi a definição de uma Base Nacional Comum Curricular – BNCC – que foi “pilotada” principalmente por ela e com apoio de outras como Todos pela Educação e Fundação Itaú.

Não são políticas isoladas, já que a criação de videoaulas obrigatórias para professores e alunos só é possível porque existe uma BNCC, extremamente diretiva, que não deixa espaço para a diversidade e promove a padronização do ensino.

Várias das plataformas utilizadas nas escolas do estado de São Paulo e em outros estados têm participação da Fundação Lemann, que, por exemplo, em Belo Horizonte oferece de forma gratuita a plataforma, mas vende contratos de suporte e formação para os poderes públicos, como foi noticiado pelo sindicato Rede – BH.

Em setembro de 2023, foi lançado um Programa pelos Ministérios da Educação e Comunicação com a presença do presidente Lula de Apoio à Conectividade pilotado pela Fundação Lemann e implementado pela Ong MegaEdu. O Programa prevê implantar a conectividade em todas as escolas públicas brasileiras, sem levar em conta que muitas delas ainda não têm energia elétrica, que organismos como UNICEF e Unesco já publicaram relatórios mostrando que mais tecnologia não produz mais aprendizado e vários países estão diminuindo fortemente a presença da educação digital nas escolas. Que interface se propõe entre educação de revolução tecnológica? A plataformização é uma delas e talvez a mais importante até agora no Brasil.

IdE: Neste ano, vivenciamos greves e mobilizações na educação, como a greve das universidades federais, a luta dos professores no Ceará, a luta de estudantes secundaristas e professores contra a privatização no Paraná, a greve dos professores municipais de São Paulo e as mobilizações dos professores estaduais contra os ataques de Tarcísio. Como você avalia as formas de resistência de professores e estudantes diante de tantos ataques à educação?

Nora Krawczyk: Como comentei no início da entrevista, desde que se iniciou a reforma do ensino médio, os docentes estão sofrendo uma avalanche de mudanças que afetam a vida tanto profissional quanto pessoal deles. É difícil para a categoria lutar sistematicamente contra todas elas, o esforço é sistemático através, como você indica, de greves mobilizações. No caso do estado de São Paulo, o qual conheço mais, uma percentagem importantíssima de docentes de ensino médio é categoria O, isto é, não tem nenhum tipo de estabilidade, e o autoritarismo do governo estadual produz medo de desemprego. Os estudantes foram atores fundamentais nos anos anteriores. Não conseguimos ainda entender por que este ano não tem se manifestado da mesma forma.

O que temos visto nas escolas é que, neste primeiro semestre de implementação da digitalização do ensino-aprendizagem e da gestão, o argumento oficial de oferecer recursos pedagógicos numa linguagem mais próxima da realidade digital dos alunos não encontrou ressonância entre os estudantes, que passam do desinteresse ao pouco aprendizado e ao tédio. Concentram-se em games pelo celular, inclusive quando estão em computadores ou tablets da escola.

Uma questão que preocupa bastante os estudantes é o sentimento de que as mudanças que vêm ocorrendo nos últimos anos no ensino médio estão aumentando a desigualdade. Um aluno me falou “é uma reforma para deixar os pobres mais pobres.”

Os professores estão muito preocupados para entender como funciona este novo sistema de gestão e ensino. Tudo é muito novo, chegou de repente, sem capacitação, mas com muito controle e cobrança. Isso claramente os desmobiliza e, no lugar de uma ação coletiva, vamos ver situações bastante diversas. Há muitas situações de simulação do uso das plataformas e dos videoaulas, no geral, para poder dar conta do conteúdo da disciplina e daquilo que os alunos compreendem.

Mark Ficher, filósofo inglês, nos fala que não é uma questão de apatia, mas de “impotência reflexiva”. Professores e estudantes sabem que a educação escolar vem piorando ano a ano e sentem que não podem fazer nada a respeito.

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