Revista Casa Marx

ChatPTS: tecnologia, capitalismo e socialismo

Martín Schapiro

Gerónimo Pelli

A partir de terça-feira, 1 de outubro, La Izquierda Diario renova-se para continuar a construir um meio de comunicação socialista para abrir o debate e tomar partido. Entre múltiplas iniciativas como o LID+, como uma grande aposta no Youtube, entre outras, construímos um bot, chatPTS, utilizando as nossas fontes de informação para ajudar a difundir ideias socialistas. Por um lado, isto permitirá a quem trabalha na redação consultar mais facilmente opiniões e fontes sobre determinados temas. Por outro lado, permitirá aos utilizadores do jornal interagir de forma conversacional e ágil com a nossa opinião, de modo a compreender melhor as nossas posições políticas e teóricas, democratizando a informação e estimulando a leitura, com recomendações de artigos específicos. Mas para além do bot, qual é a nossa visão do papel da tecnologia hoje em dia?

A tecnologia e o seu objetivo

Para os socialistas, a tecnologia é uma ferramenta que pode desempenhar um papel transformador. Embora no capitalismo tenha sido utilizada por interesses privados para aumentar os seus lucros e, por vezes, tenha intensificado a exploração do trabalho e concentrado o poder económico, também trouxe avanços que melhoraram a vida de muitas pessoas. O desenvolvimento tecnológico criou o potencial para que, noutros tipos de relações de produção, como num sistema socialista, muitas das limitações atuais possam ser ultrapassadas, conduzindo a melhores condições de vida e a mais tempo de lazer para todos.

Ao longo da história, tem-se verificado como o progresso tecnológico pode transformar as formas de produção e, ao mesmo tempo, a sociedade como um todo é transformada quando essas formas de produção entram em contradição com as relações de produção e dão origem a revoluções que podem transformar a sociedade como um todo, como a revolução burguesa ou a revolução operária.

Karl Marx, por exemplo, na sua análise do capitalismo, viu na maquinaria industrial uma dupla face: por um lado, representava um imenso progresso na capacidade humana de transformação; por outro lado, essa mesma maquinaria era utilizada para subjugar a classe operária, obrigando-a a trabalhar em condições mais duras.

No capitalismo, os avanços tecnológicos muitas vezes não beneficiam aqueles que produzem a riqueza, ou seja, os trabalhadores, pois são frequentemente utilizados para aumentar os lucros dos capitalistas. Isto cria uma contradição: embora a tecnologia tenha o potencial de reduzir as horas de trabalho, melhorar as condições de trabalho e permitir que a humanidade desfrute de mais tempo de lazer, é frequentemente utilizada para intensificar o trabalho e aumentar a exploração. Assim, em vez de libertar o trabalhador, a tecnologia no capitalismo reforça a subordinação dos trabalhadores, por exemplo, através da automação que ameaça o emprego ou de algoritmos que monitorizam e controlam os empregados.

Os socialistas não se opõem ao progresso tecnológico. Pelo contrário, reconhecemos o seu potencial para transformar a sociedade num sentido emancipatório. Num sistema socialista, a tecnologia poderia ser utilizada para o bem comum, em vez de estar ao serviço do lucro privado. Isto implica uma mudança fundamental na forma como a produção é organizada e em quem controla a tecnologia. Num sistema democrático e socialista, a tecnologia seria utilizada para reduzir o tempo de trabalho, melhorar a qualidade de vida e libertar as pessoas do trabalho repetitivo e alienante.

No entanto, grande parte da tecnologia que utilizamos atualmente foi moldada pelos padrões do capitalismo. Para além das diferentes utilizações que lhe poderiam ser dadas num sistema social diferente, a realidade é que continua a ter os preconceitos e as utilizações que o sistema atual lhe imprime. Ou seja: um desenvolvimento orientado para a maximização dos lucros, para o aumento da exploração do trabalho. O desafio para o socialismo será não só utilizar esta tecnologia para outro fim, mas também apropriar-se das coisas mais valiosas que foram construídas até agora e repensar novas tecnologias que podem certamente ser utilizadas e que não são atualmente. Por exemplo, será que faz sentido utilizar todo o trabalho social que hoje é destinado para questões como a publicidade, enquanto muitos trabalhadores continuam a ter empregos precários e de alto risco? Não seria útil utilizar toda a criatividade e trabalho social para desenvolver outros tipos de tecnologia?

Como Facundo Nahuel Martín assinala no seu livro “Iluminação Sensível”:

A tecnologia é permeada pelas relações de poder e pela dinâmica social da sociedade capitalista. Os avanços tecnológicos são desenvolvidos segundo critérios que procuram maximizar a eficiência e a rentabilidade do capital, em vez de responder a necessidades sociais ou ecológicas. Por exemplo, o big data e a sua utilização no ciberpoliciamento reflectem a forma como a tecnologia pode ser utilizada para o controle social e a dominação. A crítica da tecnologia não deve ser tecnofóbica ou tecnófila, mas deve considerar as formas tecnológicas como parte constitutiva das relações sociais capitalistas. Isto implica uma crítica imanente que reconhece as contradições e ambiguidades da tecnologia moderna, procurando refuncionalizá-la para fins emancipatórios. 1

Além disso, o controle democrático da tecnologia seria fundamental para evitar os abusos a que assistimos hoje no capitalismo. Questões como a vigilância em massa, a utilização de dados para manipular o comportamento das pessoas e a crescente concentração de poder nas mãos de gigantes tecnológicos são fenómenos que só podem ser resolvidos através do controle social da tecnologia. Num sistema socialista, a tecnologia poderia ser utilizada para dar poder às pessoas e não para as controlar.

Em última análise, os socialistas querem uma utilização democrática da tecnologia, em que o seu desenvolvimento seja orientado para o bem-estar coletivo. Em vez de permitir que os avanços tecnológicos sirvam apenas para aumentar a riqueza de alguns, os socialistas propõem que a tecnologia seja posta ao serviço da emancipação humana. Isto requer não só uma mudança nas relações de produção, mas também uma mudança na forma como entendemos e usamos a tecnologia. A tecnologia não é um inimigo, mas uma ferramenta poderosa que, libertada dos grilhões do capital, será indispensável na construção de uma nova sociedade.

O taylorismo como exemplo de finalidade tecnológica

Ao longo da história do capitalismo, o desenvolvimento da grande indústria foi acompanhado pela imposição de tarefas repetitivas e desumanizantes aos trabalhadores. Marx já analisava a forma como a maquinaria e a divisão do trabalho fragmentavam as competências do trabalhador, reduzindo-o à execução de operações simples e monótonas.

Um exemplo da diferença entre a tecnologia em geral e a sua finalidade em particular pode ser o debate sobre o taylorismo, um sistema de organização do trabalho que otimiza as tarefas através da divisão técnica. No entanto, o taylorismo representou o desenvolvimento da grande indústria, que impôs tarefas repetitivas e desumanizantes. Lenin salientou que, nestes sistemas, os trabalhadores eram reduzidos a engrenagens de uma grande máquina, desempenhando tarefas alienantes. Embora estas formas de organização do trabalho maximizassem a eficiência e os lucros dos proprietários das fábricas, também aprofundavam a exploração dos trabalhadores, fragmentando a experiência humana e degradando os trabalhadores, que já não se podiam reconhecer nos produtos que criavam.

Lenin criticou a forma como, nas fábricas capitalistas, estes métodos beneficiavam exclusivamente a classe dominante em detrimento da classe trabalhadora e defendeu que o socialismo não devia rejeitar automaticamente os avanços tecnológicos e organizacionais que surgiram no capitalismo. Em vez disso, estes deveriam ser “tomados” e transformados para servir os interesses dos trabalhadores, ao mesmo tempo que poderiam ser criadas novas inovações. O socialismo, e em particular a sua fase de transição, deve apropriar-se dos avanços técnicos e aprender com eles, reorganizá-los e utilizá-los para a planificação socialista, na medida em que dêem poder aos trabalhadores e evitem o seu aspeto despótico e alienante.

Um dos elementos-chave para Lenin era o controle dos trabalhadores. No capitalismo, muitas destas práticas são utilizadas como instrumento de exploração, precisamente porque os trabalhadores não têm controle sobre o processo produtivo. Com o controle dos trabalhadores e a planificação democrática, a alienação e a exploração inerentes ao capitalismo poderiam ser eliminadas:

A última palavra do capitalismo neste domínio – o sistema de Taylor – como todos os progressos do capitalismo, reúne toda a ferocidade refinada da exploração burguesa e várias realizações científicas do mais alto valor no que se refere ao estudo dos movimentos mecânicos durante o trabalho, à supressão dos movimentos supérfluos e desajeitados, à adoção dos métodos de trabalho mais racionais, à introdução dos melhores sistemas de contabilidade e controle, etc. A República Soviética deve, a todo o custo, adquirir as mais valiosas realizações da ciência e da técnica neste domínio. A possibilidade de realização do realização do socialismo será determinado precisamente pelo grau em que conseguirmos combinar o poder soviético e a forma soviética de administração com os últimos desenvolvimentos do capitalismo.” 2 

A tecnologia, fruto da cooperação social

Nos Grundrisse, Marx fala do “intelecto geral” para se referir ao conhecimento social generalizado, ou seja, o conhecimento científico, técnico e tecnológico acumulado pela sociedade e que se torna uma força produtiva central sob o capitalismo. Este conhecimento não é simplesmente um conjunto de competências, mas inclui todo o desenvolvimento intelectual e científico que, integrado na maquinaria e nos sistemas produtivos, transforma radicalmente as relações de produção.

Marx argumentou que, com o avanço do capitalismo e a ascensão da grande indústria, esse conhecimento científico-tecnológico se transforma em “órgãos” humanos produtivos. Ou seja, materializa-se em maquinaria, sistemas de produção e tecnologias avançadas que transformam radicalmente as relações de produção. No tempo de Marx, isso manifestou-se em inovações como os caminhos-de-ferro e o telégrafo. Hoje, podemos observar este fenómeno em tecnologias como os microchips, os satélites, as redes de Internet, a genética, a robótica e a inteligência artificial, cujo impacto na transformação da produção como um todo está ainda em processo de avaliação. Este conhecimento torna-se uma força produtiva fundamental que transforma as condições do próprio processo de vida social.

No capitalismo, este “intelecto geral” é incorporado em tecnologias que dominam a produção económica e a vida social, gerando uma subsunção crescente deste conhecimento ao capital. Essa cooperação não se limita apenas à cooperação física, mas inclui também a cooperação intelectual e cognitiva, mediada por tecnologias derivadas desse “intelecto geral”.

Isto cria uma contradição para o capital, uma vez que este é incorporado principalmente como “capital fixo” (maquinaria, tecnologia) numa sociedade que mede a “riqueza” em termos de capital variável explorado (trabalho humano direto). O capitalismo expropria a cooperação e o conhecimento dos trabalhadores para o lucro privado. A classe trabalhadora tem a capacidade de inverter esta situação e utilizar alguns destes recursos ou outros que ela própria cria para a sociedade socialista.

O exemplo da cooperação social é evidente em todos os domínios da nossa vida. A Uber seria impossível sem os smartphones, que são alimentados por GPS e redes de telecomunicações. Estas redes assentam em satélites e cabos submarinos, desenvolvidos graças à engenharia aeroespacial e às tecnologias de transmissão de dados. A engenharia aeroespacial é possível graças aos princípios da física e da matemática, que, por sua vez, se baseiam em avanços anteriores, como a linguagem e a escrita, que permitiram a acumulação e a transmissão de conhecimentos. Tudo isto foi inicialmente possível graças ao controle do fogo, que permitiu aos primeiros seres humanos cozinhar alimentos, fabricar ferramentas e criar comunidades mais complexas.

No fundo, enquanto o empresário é constantemente retratado como um inovador e, em alguns casos, até como um benfeitor social, estas aplicações como a Uber (entre tantos outros exemplos) são o resultado de uma longa cadeia de inovações e descobertas ao longo da história da humanidade que são postas em prática neste momento por milhares de trabalhadores que fabricam as diferentes peças necessárias ao seu funcionamento e, em muitos casos, fazem-no com a ajuda do Estado.

Para onde vamos e quem o define? Alguém tem o botão vermelho?

O desenvolvimento vertiginoso da IA obriga-nos a perguntar: para onde vamos e, mais importante ainda, quem está ao volante desta “revolução tecnológica”? A metáfora do “botão vermelho” – esse hipotético interrutor capaz de travar o avanço da IA caso se torne perigoso – convida-nos a refletir sobre o controle e as implicações desta tecnologia transformadora.

Atualmente, assistimos a uma concentração de poder tecnológico sem precedentes. Como Cancela refere no seu último livro, oitenta por cento do investimento na renovação de cabos submarinos, nos últimos anos, provém de apenas dois gigantes tecnológicos norte-americanos: Google e Facebook, e os centros de dados tornaram-se ferramentas essenciais para a expansão e aprofundamento da financeirização do mundo. Esta concentração não só consolida o seu domínio econômico, como também lhes confere um papel de liderança na definição do futuro tecnológico. A questão que se coloca é: devemos permitir que um punhado de empresas privadas tenha tanto controle sobre uma tecnologia com o potencial de redefinir a sociedade?

Os modelos de IA, como o GPT e outros, baseiam-se em grandes quantidades de dados, mas não são neutros. Carregam consigo os preconceitos históricos e culturais da sociedade que os produz. Temos visto exemplos preocupantes de como estes preconceitos se manifestam em representações problemáticas de minorias ou na forma como questões como o socialismo são abordadas. A IA, longe de ser um árbitro imparcial, pode tornar-se um amplificador dos preconceitos existentes se não for abordada de forma crítica. Recentemente, tem havido mesmo alguma investigação sobre a forma como podem ser interpretados de modo a permitir uma manipulação direta 3.

De uma perspetiva marxista, é crucial reconhecer que a IA, como toda a tecnologia, é fruto da cooperação social e do “intelecto geral” – o conhecimento coletivo acumulado ao longo de gerações. No entanto, no capitalismo, os benefícios e o controle desta tecnologia estão sendo apropriados por interesses privados. Esta contradição entre a produção social do conhecimento e a sua apropriação privada é um reflexo das tensões mais amplas do sistema capitalista.

O atual desenvolvimento da IA coloca sérios desafios ao mundo do trabalho. Por um lado, tem o potencial de libertar os trabalhadores de tarefas repetitivas e alienantes. Por outro lado, sob a lógica capitalista, é frequentemente utilizada para intensificar a exploração, substituir empregos e aumentar a vigilância sobre os trabalhadores. Neste artigo, não entraremos em pormenores sobre as possibilidades reais da nova vaga de tecnologia, mas a questão não é apenas saber se a IA irá transformar o trabalho, mas também como o fará e em benefício de quem.

Perante estes desafios, há uma necessidade urgente de controle democrático sobre o desenvolvimento e a aplicação da IA. Não podemos permitir que decisões que afectarão profundamente as nossas vidas e sociedades sejam deixadas nas mãos de um pequeno grupo de executivos ou tecnocratas. É necessária uma participação mais ampla na tomada de decisões, incluindo trabalhadores, comunidades afectadas e peritos de várias disciplinas.

Há alguns meses, vários peritos em tecnologia apelaram a uma paragem dos avanços tecnológicos e a um debate sobre o seu destino. No entanto, uma vez que se trata de uma gestão privada, as empresas que estão à frente definem o caminho a seguir e as que estão atrás pedem um abrandamento simplesmente para não perderem. Numa sociedade verdadeiramente democrática, este “botão” não estaria nas mãos de alguns, mas seria uma responsabilidade colectiva. Implicaria a capacidade da sociedade para decidir democraticamente como desenvolver e utilizar a IA, estabelecendo limites quando necessário e redireccionando o seu desenvolvimento para fins socialmente benéficos. Neste contexto, a ideia que alguns autores, como o atual CEO da Microsoft AI, Mustafa Suleyman, escreveram no seu recente livro, de pensar em como contê-la e até “desligá-la se necessário”, não parece realista no meio de uma corrida de velocidade tanto a nível empresarial como geopolítico. 4

Há múltiplos debates sobre se a IA é inteligência, tem criatividade, pode rebelar-se, entre várias questões éticas. E também se estamos perto de construir uma inteligência geral artificial (AGI), algo como uma IA que pode resolver qualquer tarefa cognitiva humana. Não é objetivo deste artigo entrar nessa controvérsia. O seu objetivo é, no entanto, mostrar que, em última análise, o debate sobre a IA não é apenas tecnológico, mas também profundamente político e filosófico. Obriga-nos a questionar que tipo de sociedade queremos construir e como é que a tecnologia nos pode ajudar a chegar lá. Se queremos que a IA seja uma força de emancipação humana e não apenas mais um instrumento de exploração e controle, temos de lutar por um modelo de desenvolvimento tecnológico que seja democraticamente debatido e orientado pelas necessidades sociais.

Regular ou expropriar?

Será suficiente ou possível regular os gigantes tecnológicos ou chegou a hora de pensar na expropriação das infra-estruturas tecnológicas? O caso de Elon Musk e da sua compra do Twitter (atualmente X) constitui um exemplo paradigmático dos perigos da concentração de tanto poder tecnológico nas mãos de indivíduos com agendas políticas definidas.

Musk, um bilionário com inclinações políticas de extrema-direita, não só adquiriu uma plataforma de comunicação de massas, como também está a investir fortemente no desenvolvimento da sua própria IA com projectos como o Grok, capaz de responder em tempo real a diferentes questões dos utilizadores. Esta concentração de poder mediático e tecnológico nas mãos de alguém que apoia abertamente figuras políticas como Trump ou Milei suscita sérias preocupações quanto ao futuro da liberdade de expressão e do fluxo de informação nas nossas sociedades.

A gestão do Twitter por Musk tem demonstrado as contradições inerentes à sua suposta defesa da liberdade de expressão. Por um lado, censura slogans legítimos, como os do povo palestiniano, e, por outro, ignora os pedidos de governos como o do Brasil para bloquear contas que promovem ideologias fascistas. Este duplo discurso revela que a “liberdade de expressão” se torna muitas vezes uma cortina de fumo nas mãos de proto-fascistas para promover agendas políticas específicas. O problema, em última análise, é a capacidade de proibir o discurso, uma vez que este pode ser utilizado hoje contra a direita e amanhã contra aqueles que protestam pelos seus direitos.

As tentativas de regulamentar estas empresas tecnológicas têm-se revelado repetidamente ineficazes. As multas, por muito pesadas que sejam, não passam de um pequeno inconveniente para empresas que geram milhares de milhões em lucros. Os regulamentos, muitas vezes concebidos com a ajuda dos próprios lobbies tecnológicos, têm frequentemente lacunas que permitem que estas empresas continuem a operar com relativa impunidade.

Neste contexto, surgem com força propostas como a de Evgeny Morozov e de outros pensadores críticos: a expropriação das infra-estruturas tecnológicas. Esta ideia baseia-se na premissa de que a tecnologia, especialmente a Internet e a IA, é demasiado importante para que o futuro da humanidade seja deixado nas mãos de interesses privados. A expropriação permitiria uma reconfiguração destas infra-estruturas, transformando-as de instrumentos de controle e de acumulação de capital em bens comuns ao serviço da sociedade.

Esta reconfiguração poderia ser um passo crucial para a descolonização da tecnologia, apoiando a criação de uma arquitetura da Internet mais democrática e equitativa. Libertar-se-ia a tecnologia da sua função predominante na acumulação de capital e do seu papel na manutenção do neoliberalismo global, permitindo a sua utilização para fins socialmente benéficos.

O debate está a intensificar-se com os recentes desenvolvimentos que permitem a introdução de alterações tendenciosas na tecnologia de IA. Isto significa que aqueles que controlam estes sistemas podem potencialmente influenciar a forma como a IA processa e apresenta a informação, o que tem enormes implicações para a formação da opinião pública. Mustafa Suleyman, cofundador da DeepMind e atual diretor executivo da Microsoft AI, sugere que existe a possibilidade de estas tecnologias poderem influenciar significativamente o resultado de uma eleição.

Alguns argumentam que existem riscos inerentes ao desenvolvimento descontrolado da IA, tal como expresso numa carta aberta assinada por numerosos especialistas. No entanto, estes avisos são frequentemente ignorados por aqueles que têm interesses económicos no desenvolvimento acelerado destas tecnologias. O debate sobre a “contenção” da IA, que inclui propostas extremas como “desligar a ficha se necessário”, revela a profunda preocupação que existe mesmo entre os criadores destas tecnologias.

O aparecimento de iniciativas de fonte aberta, como a EleutherAI ou o lançamento do modelo Llama pela Meta, demonstra que existem alternativas ao modelo proprietário dominante. No entanto, estas iniciativas surgem frequentemente como uma resposta competitiva e não como um verdadeiro empenhamento na abertura e na democratização da tecnologia.

Para além das implicações acima referidas, a IA apresenta graves contradições ambientais. O objetivo de maximizar os lucros conduziu a uma utilização desproporcionada dos recursos naturais e a um impacto ecológico significativo. Os centros de dados que suportam as operações dos gigantes tecnológicos e os modelos de IA consomem enormes quantidades de energia e água. Por exemplo, estima-se que uma sessão média de GPT, que inclui 10 a 50 consultas, pode consumir até meio litro de água devido ao arrefecimento do servidor e ao consumo de energia associado.

Em suma, a expropriação das infra-estruturas tecnológicas não é apenas uma proposta econômica, mas uma necessidade democrática. Permitiria colocar estas poderosas ferramentas sob controle público, assegurando que o seu desenvolvimento e aplicação estão alinhados com o interesse comum e não com os benefícios privados de uma elite tecnológica.

A expropriação, no entanto, não deve ser vista como um fim em si mesmo, mas como parte de um programa de transição para o socialismo. Implicaria também uma reformulação radical da forma como desenvolvemos e utilizamos a tecnologia, no sentido de um planeamento democrático da economia.

Em última análise, a decisão entre regular ou expropriar é uma decisão sobre o tipo de futuro que queremos construir. Um futuro em que a tecnologia seja uma ferramenta de emancipação e progresso social, ou um futuro em que seja um instrumento de controle e exploração. A magnitude do desafio exige soluções ousadas. A expropriação das infra-estruturas tecnológicas pode ser o primeiro passo para um novo paradigma tecnológico ao serviço da humanidade.

Tecnologia para libertar

Num mundo dominado por grandes corporações tecnológicas e pela tensão constante entre regulação e controle da tecnologia, a criatividade surge como um poderoso motor de mudança. O exemplo do bot desenvolvido pelo La Izquierda Diario tenta mostrar que, mesmo com recursos limitados, é possível utilizar a tecnologia de uma forma inovadora e ao serviço da comunidade.

A iniciativa de La Izquierda Diario mostra que, mesmo em pequena escala, estas tecnologias podem ter uma utilização diferente. Neste caso, é para a divulgação e democratização das ideias socialistas. A ideia do ChatPTS é que se possam fazer perguntas sobre uma variedade de temas, desde questões ideológicas a questões políticas ou de atualidade. A ferramenta tentará identificar os artigos ou livros mais relevantes para resolver essa dúvida e apresentará um resumo personalizado com sugestões de hiperligações para complementar a leitura. Esta ferramenta não substitui, de forma alguma, a reflexão colectiva, o intercâmbio e o permanente vai e vém entre a teoria e a prática. Funciona como um agregador e sintetizador do que foi escrito, mas não tem respostas únicas ou precisas, mas sim algo dinâmico, que se renova, repensado com novas experiências históricas.

Obviamente, não é o único exemplo. Há centenas de milhares de pessoas em todo o mundo que, tal como esta pequena equipa, utilizam as suas competências e criatividade para desenvolver ferramentas tecnológicas que capacitam as comunidades e promovem a mudança social.

Numa sociedade em que as necessidades básicas são satisfeitas, a tecnologia pode ser o meio para reconverter e redefinir o papel do trabalho. Ao utilizar a tecnologia para eliminar gradualmente as tarefas mais aborrecidas e alienantes, podemos libertar o nosso tempo para actividades mais enriquecedoras e gratificantes.

Como defende Catherine Samary,

Assim que o trabalho se torna interessante em si mesmo (e proporciona um nível de vida considerado socialmente justo num determinado contexto, por consenso), a rotina e o conservadorismo podem ser facilmente combatidos através da comparação de resultados, da pressão das equipas que trabalham em conjunto, da pressão dos consumidores de bens e serviços e do prazer do trabalho bem feito. [5]

É precisamente esta a sensação sentida por aqueles de entre nós que dedicam o seu tempo e esforço ao desenvolvimento de tecnologia ao serviço da comunidade. Conhecemos os limites da utilização da tecnologia desenvolvida no capitalismo. Isto não é nada comparado com o que poderia ser alcançado sob o socialismo, mas mesmo com a nossa pequena iniciativa queremos mostrar uma utilização revolucionária da tecnologia.

A criatividade e o trabalho coletivo daqueles que se recusam a aceitar o domínio das grandes corporações tecnológicas são as sementes de um futuro alternativo. Ao organizarmos e articularmos estas iniciativas “a partir de baixo”, podemos contribuir para a luta direta contra o capital e para a perspetiva de construção de uma tecnologia que sirva as necessidades e aspirações da classe trabalhadora e das comunidades oprimidas. Só assim poderemos avançar para uma sociedade em que a tecnologia seja um meio para a plena realização da humanidade e não um instrumento de dominação e exploração.

NOTAS DE RODAPÉ

1. Facundo Nahuel Martin, Iluminismo Sensível. Hacia un giro materialista en la teoría crítica, Ediciones IPS, p. 27.

2. Lenine, As Tarefas Imediatas do Poder Soviético.

3. https://transformer-circuits.pub/2024/scaling-monosemanticity/index.html

4. Mustafa Suleyman, The Coming Wave, 2023, Penguin Random House Publishing Group.

5. Catherine Samary, Planning, Markets and Democracy, International Research and Training Institute, 1989.

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