Thiago Flamé
Assim como tratamos nas colunas de Iuri Tonelo e de Pedro Oliveira, morreu, impune, Delfim Netto, inimigo irreconciliável da classe trabalhadora e de todos os povos do Brasil. Este texto, mais um, sobre esse personagem asqueroso e sombrio não se justifica pela morte em si, mas pela repercussão, em especial pelas declarações de Lula e Haddad. Perdoado o criminoso, que se apague o próprio crime.
Antes de mais nada, é preciso limpar os campos. Não é como professor e economista que ele deve ser lembrado, muito menos como promotor do desenvolvimento nacional, como disse Haddad. Comparado aos economistas que polarizaram o debate econômico no século XX, sejam os liberais ou os desenvolvimentistas, Delfim Netto tem a estatura de uma pulga. É como político que teve sua importância.
Não se pode negar a ele o mérito de ter sido um bom leitor de Marx, no espírito de Sun Tzu, “conhece o inimigo..”. Devia portanto conhecer os textos em que Marx dava o veredicto histórico sobre a economia política burguesa como ramo científico. Chegou até a teoria do valor de Ricardo, ponto de partida para o próprio Marx. Só que tendo chegado a esse ponto, tinha que se prostrar frente a seus próprios limites de classe burgueses e se converter em apologia da ordem capitalista e ferramenta para a maximização dos lucros.
Delfim Netto encontrou sua força justamente na sua pequenez. Levou a apologia ao estado de arte, e como economista que foi, talvez como nenhum outro, o perfeito demagogo. Não criou nenhuma ideia nova, mas se servia no balcão das ideias para defender os interesses dos grandes empresários e os seus próprios.
Antonio Delfim Netto não nasceu burguês, mas se tornou, através de um esforço lento e sistemático, a partir do seu primeiro emprego como auxiliar de escritório até se tornar o poderoso Czar da economia durante o período mais repressivo da ditadura e como é sabido, nunca se arrependeu, nem cinicamente, como tantos, por ter assinado e apoiado o AI-5. Criminoso confesso. Sua carreira política não foi, no entanto, como homem de ação, mas como burocrata que puxava os fios atrás da mesa do seu Gabinete, angariando afetos e favores e manipulando para derrubar adversários. Com esses métodos conseguiu o que poucos civis conseguiram: teve uma participação no centro do poder.
Algo em sua trajetória lembra a trajetória de Lula, mas sem o brilho da oratória e das grandes assembleias de massas. Lula, o nordestino retirante, peão de fábrica, que chegou à presidência. Delfim Netto, menino de classe média da Mooca que se tornou ditador. A história os colocou frente a frente , mas a isso voltaremos no próximo tópico do texto. Agora é preciso ainda dizer que, apesar dessa semelhança com a trajetória de Lula, as diferenças de classe e de papel histórico são mais determinantes.
Neodesenvolvimentismo, Delfim Netto e Lula
Em suas notas e comentários de pesar sobre a morte de Delfim Netto, Lula revelou muito sobre si mesmo. Em parte da imprensa petista, discutiu-se que foi um erro de Lula, que ele não precisava ter sido tão elogioso, poderia ter se contido. Quem faz essa crítica não enxerga o mais importante. Que Lula foi sincero, no momento em que quis gravar para a posteridade sua posição em relação a Delfim Netto. E mais importante do que isso, foi cirúrgico em sua sinceridade, pois nesse caso a verdade cai como uma luva para seus interesses político no momento em que, com a mão esquerda, transforma o presidente do Banco Central e os altos juros num bode expiatório para todos os problemas econômicos e que, com a mão direita, aplica o Arcabouço Fiscal e cortes de gastos a serviço do grande capital.
Entre outras coisas, Lula lembrou que se reconciliou com Delfim Netto e lhe pediu desculpas publicamente por críticas erradas no passado. Disse também que não houve economista de fora do governo que defendeu mais as suas “políticas sociais” do que Delfim Netto. Ou o homem do “primeiro crescer para depois dividir” se converteu em defensor da justiça social depois de aposentado como ditador, ou essa reconciliação entre Lula e Delfim já durante o primeiro mandato do petista revela algo de podre no reino do lulismo. Evidentemente, Delfim Netto não se converteu em defensor dos pobres, seguiu até o fim de seus dias fiel aos grandes empresários.
O grande serviço que prestou a Lula, na sua conversão ao neoliberalismo com roupagem social foi o de defendê-lo dos ataques dos economistas progressistas, mercado internistas e neodesenvolvimentistas. Na sua perspicácia, usou e abusou de Marx com o objetivo de defender o lucro felpudo que os bancos, o agronegócio e os empresários em geral obtinham sob a política econômica do lulismo. O “velho Karl” era como Delfim Netto se referia jocosamente e com uma intimidade fora de lugar, para atacar os que em nome de Marx defendiam uma vulgata de Keynes, a quem aliás, sempre se referiu pelo sobrenome.
Não era, diga-se, uma tarefa difícil. Lula se apoiava nas exportações agrícolas para regular a inflação via valorização cambial e trazer uma enxurrada de dólares para o Brasil, sustentando um ciclo de consumo baseado no crédito, na expansão do trabalho precário, em planos sociais ao invés de direitos universais e promovendo os maiores lucros da história para os grandes bancos. Os economistas progressistas falsos socialistas propunham um caminho de desvalorização cambial e medidas de proteção do mercado interno, que, trocada em miúdos, significaria substituir o capital estrangeiro por um ataque ao nível salarial já baixo da classe trabalhadora. Se tem uma coisa em que Delfim Netto era bom, quando lhe era conveniente, era traduzir o linguajar econômico acadêmico à linguagem dos interesses por trás deles.
Não à toa Lula disse que depois do pedido de desculpas passou a “ser admirador da sagacidade, da inteligência e da esperteza do Delfim Netto”. Na sagacidade e esperteza, mais do que na trajetória, Lula e Delfim se encontram. Lula, como Delfim Netto, é um pragmático.
Tudo isso joga muita luz ao passado também. Não há nem nunca houve nenhum exagero no ódio da classe trabalhadora que Lula, como dirigente sindical e líder do PT, buscava representar, contra Delfim Netto. Não houve críticas exageradas. Delfim Netto foi um ardiloso inimigo que morreu impune aos 96 anos. As grandes greves operárias colocaram na ordem do dia a derrubada da ditadura, caminho que teria levado Delfim Netto a viver o resto de seus dias na cadeia, junto a muitos generais e empresários, pelos crimes cometidos durante a ditadura. Um dos fatores que evitou esse caminho foi a própria atuação de Lula nesses processos. Hoje Lula afirma que se tratou Delfim Netto como um grande inimigo foi porque isso é da política e mostra o quanto seus interesses foram e são alheios aos da classe trabalhadora.